Reformados encontram um adversário: O Jornalismo.

Jared Victor
7 min readJan 20, 2024

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Evangélicos pentecostais/neopentecostais estão acostumados com a exposição nos jornais e coberturas de mídia. Ao menos já se tornou comum que sejam esses os evangélicos a estamparem materiais nem sempre em situações objetivas trazendo uma maior confiança para esse segmento do universo protestante. Já os chamados protestantes históricos gozam de um tipo de prestígio que normalmente os afasta de escândalos ou episódios constrangedores e controversos. Era isso que se poderia dizer até agora. As coisas parecem estar mudando e o último episódio ocorrido na próxima edição da conferência Consciência Cristã (CC) pode nos mostrar uma tendência crescente.

Em julho do ano passado a organização da Consciência Cristã divulgou a seleção de palestrantes e pregadores da edição de 2024. Conhecida por reunir evangélicos de diferentes denominações em um evento grandioso na cidade de Campina Grande/Paraíba, o CC sempre foi reconhecido por sua plataforma evangélica e conservadora, mesmo sendo uma grande tendência de variedades teológicas. Ainda em julho de 2023 uma grande surpresa ficou com a conta da presença de Douglas Wilson entre os painelistas. Douglas Wilson é um pastor reformado com um histórico de controvérsias que o fez ser renegado até entre seus pares conservadores do arraial reformado nos EUA. Seus simpatizantes no entanto são atuantes nos guetos mais extremistas reformados e nos últimos anos passaram a atuar também no Brasil, principalmente na publicação de livros de autor.

Quando Douglas Wilson foi confirmado na conferência já foi evidente a evidência de descontentamento e preocupação de alguns, principalmente aqueles que já conheciam sua história e teologia. Entre os mais vocais estavam Yago Martins e Norma Braga, ele já havia falado em seu canal das acusações que pairavam sobre Douglas Wilson ao descobrir e ser negligente com casos de abuso, Norma há tempos também lançava luz sobre a questão em suas redes sociais, algo que você custou bastante. O fato de ambos não serem evangélicos de esquerda mostra que não se tratava de um complô de progressistas contra o pastor conservador.

“Ninguém, literalmente ninguém, entre os reformados sérios aqui nos EUA ainda chama o Douglas Wilson pras coisas. É como sempre. O brasileiro demora um pouso mais nas tendências.”

@reformother

No dia 23 de novembro o Rev. Emilio Garofalo escreveu sobre suas ressalvas com a presença de Wilson no evento e como isso poderia endossar sua teologia perniciosa no Brasil. Sua declaração foi significativa pois Emílio é um nome respeitado entre os presbiterianos, além disso é também um dos pastores expositores do evento. Com isso a consternação cresceu e era conhecida de mais pessoas.

“…no que ele produz de bom, tem gente falando sobre a mesma coisa e melhor; no que ele produz de ruim é bem nocivo; e o que tem de sombra sobre ele é tão pesado que colocá-o de lado é, a meu ver, o ideal enquanto não chego à clareza..”

Emilio Garofalo Neto

Nos últimos dias no ano o perfil do Instagram da CC decidiu fazer publicações sobre a presença de Douglas Wilson no evento. O inusitado foi a rede social do evento ter bloqueado algumas pessoas previamente e continuar bloqueando e pagando comentários dos que faziam criticas na publicação. Vários perfis foram até o Twitter exporem a situação e lançarem luz para o fato da organização estar se utilizando dessas arbitrariedades.

Mas se até então tudo não passava de lavação de roupa suja dentro dos muros do gueto reformado foi a publicação no dia 16 de janeiro do Intercept Brasil que deflagrou a situação para todas as latitudes possíveis. O texto do pastor e teólogo Ronilso Pacheco escancarava as relações de Douglas Wilson com o ecossistema evangélico da extrema-direita norte-americana que é parte da base de movimentos políticos como o Trumpismo ou o Nacionalismo Cristão. Mas foi o destaque que Ronilso deu as declarações de Douglas Wilson sobre a escravidão dos Estados Unidos que saltou aos olhos de todos.

Douglas Wilson tem um histórico controverso de opiniões sobre a escravidão e todas as instituições culturais e religiosas típicas do sul dos Estados Unidos, região marcada pela presença histórica de evangélicos conservadores. Em 1996 em um livreto intitulado Southern Slavery, As It Was Wilson, e seu co-autor Steve Wilkins, procuravam estabelecer um tipo de revisionismo histórico do que foi a escravidão naqueles tempos:

“A escravatura tal como existia no Sul não era uma relação antagônica com animosidade racial generalizada. Devido ao seu caráter predominantemente patriarcal, era uma relação baseada no afeto e na confiança mútuos. Nunca houve uma sociedade multirracial que existisse com tanta intimidade e harmonia mútua na história do mundo. O crédito por isso deve ir para a predominância do Cristianismo. O evangelho capacitou homens que eram distintos em quase todos os aspectos a viver e trabalhar juntos, a serem amigos e muitas vezes íntimos. Isso aconteceu a tal ponto que os modernos doutrinados na propaganda dos ‘direitos civis’ ficariam chocados se soubessem metade do assunto.”

Southern Slavery, As It Was p. 24

Posteriormente Douglas Wilson tratou de se distanciar dessas declarações a medida que elas soavam absurdas, ele as foi substituindo por declarações mais enfáticas sobre seu repúdio a escravidão, ao menos para aplacar criticas. Serão elas que habilmente serão mencionadas nas tentativas de reverter a situação.

A repercussão ocorreu de tal modo que no dia 17 uma carta pública escrita por Wilson foi publicada no site de sua editora e devidamente traduzido e publicado no blog da editora Monergismo, uma das instituições que o apoiam no Brasil. Em uma “UMA PALAVRA AO BOM POVO DO BRASIL” Douglas Wilson tentou se defender das acusações e rapidamente virar o caráter da narrativa:

“…por que ainda existe uma controvérsia? A escravidão terminou no Brasil em 1888. Em meu país, ela terminou em 1865. Por que isso ainda é um problema? A questão central em tudo isso é a autoridade de Jesus Cristo e a suficiência de sua santa Palavra, a Bíblia.”

A questão não seriam suas declarações ou todo tipo de coisa que recai sobre sua conta, o que havia em questão era o cancelamento de alguém comprometido com o evangelho. Sendo assim o real mérito da questão estava sendo reorientado para outro lugar, um lugar onde Douglas poderia contar com o apoio de evangélicos piedosos e preocupados com aqueles que são perseguidos por causa de sua pregação.

No mesmo dia 17 coube ao Presidente da Visão Nacional para a Consciência Cristã (VINACC), Euder Ferreira, a tarefa ingrata de gravar um vídeo lendo uma nota de esclarecimento afirmando que em razão das preocupações com ações violentas durante o evento a participação de Douglas havia sido cancelada. A nota procurou distanciar a VINACC de qualquer suspeita de apoio a escravidão, mas indicou que o que haviam eram interpretações de falas de Douglas e que ele merecia o direito de se retratar. Posteriormente coube a editora Trinitas disponibilizar uma conversa com Douglas que reafirmou o que já poderia ser encontrado anteriormente na Carta Aberta.

Entre celebrações e lamentos o evento e os nomes ligados a ele viram uma visibilidade midiática grandiosa e sem precedentes que definitivamente não esperavam quando ousaram convidar alguém como Douglas Wilson para o evento. Seus apoiadores certamente já tratam de tentar apresentar Douglas como mais uma vítima do cancelamento e da intolerância contra cristãos.

Não é a primeira vez que nos últimos anos os reformados estão expostos de forma embaraçosa em matérias de jornais de grande visibilidade. Em meados de 2022 a Igreja Presbiteriana do Brasil teve que assistir várias matérias cobrindo as intenções da ala conservadora da denominação em aprovar medidas constitucionais que permitissem a perseguição de membros considerados de esquerda. Após intensa visibilidade a denominação recuou e não concretizou os anseios da ala conservadora.

As disputas internacionais no arraial reformado vêm coincidindo com o maior interesse pelo papel dos evangélicos nas recentes movimentações políticas e culturais do país, e entre os evangélicos os presbiterianos/reformados parassem receber um interesse especial desde que dois de seus pastores ganharam destaques no governo Bolsonaro. André Mendonça se tonou Advogado-geral da União e posteriormente coube a ele ser o “ministro terrivelmente evangélico” indicado por Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal. Milton Ribeiro, também pastor presbiteriano, tornou-se Ministro da Educação até ser destituído após constatação de corrupção dentro do Ministério. Outros reformados também puderam ser encontrados em funções e cargos dentro do governo bolsonarista.

Os reformados definitivamente são um grupo que nos últimos tempos almejam se consolidar na praça pública. Desejamos ser um celeiro daqueles que podem ser vistos como os mais relevantes para serem ouvidos dentro e fora da igreja, e ter trabalho diligentemente pra isso atuando em organizações, think tanks, editoras, instituições de ensino e produção de conhecimento. Muitos têm sido apresentados como hábeis leitores da realidade do Brasil à medida que os evangélicos se tornam cada vez mais presentes nos espaços públicos.

O fato é que esses esforços caminharam nas esteiras da radicalização e polarização e na tentativa de se trazerem relevantes e notáveis ​​esse pequeno e influente grupo de evangélicos esquecidos que também possuem inconsistências e contradições que não são apenas capturadas por adversários progressistas, mas também por seus pares conservadores e moderados que percebem que existem elefantes na sala.

O jornalismo tem se tornado um instrumento cada vez mais potente e familiar em contextos evangélicos onde a circulação de informação nem sempre acontece ou é direcionada o suficiente para não cobrir assuntos controversos e comprometedores para informar os leitores internos. O interesse da chamada mídia secular no entanto cresce enquanto os agentes conservadores pensam que às vezes não esperam que suas ações recebam atenção fora ou dentro de seus ambientes controlados. A necessidade de uma mídia especializada e independente cresce nos nossos círculos evangélicos que normalmente só se guiam pela declaração oficial de pastores e denominações que não são específicas em quem lança luz sobre o contraditório, mesmo quando isso custa a integridade e o testemunho dessas igrejas e organizações.

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