Porque Andrea Vargas e David Riker não são (necessariamente) as referências pra mim.

Jared Victor
9 min readAug 11, 2023

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O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch.

Dificilmente alguém que esteja interessado e engajado nos debates sobre sexualidade em certos setores da igreja evangélica brasileira escape de ouvir em algum momento nomes como Andrea Vargas ou David Riker, ambos (com um destaque para a Andrea) estão nos últimos anos se qualificando como vozes influentes nas discussões sobre sexualidade e certamente tem tido a capacidade de dar o tom dos discursos e da maneira como algumas questões são entendidas e promovidas em igrejas.

Quando eu comecei a buscar por quem estivesse falando sobre sexualidade há alguns anos atrás os vídeos da Andrea me apareceram quase que instantaneamente, e bom, quem não assistiu ao “Um Olhar sobre a Homossexualidade” do JesusCopy? A maneira franca e amigável dela lidar com a questão certamente é algo distinto de discursos hostis com a qual muitos de nós estávamos acostumados até então.

Andrea lidera um ministério que fornece formação teológica dirigida ao aconselhamento e as missões urbanas, e o carro chefe do ministério certamente é a sexualidade. Muitas pessoas já passaram pelo Avalanche, o que faz com que ele seja o maior propagador de uma teologia, um discurso ou uma abordagem. O Avalanche é por isso de onde saem muitos

Correndo por fora está David Riker, que também vem se destacando nas redes sociais como uma voz para o debate sobre sexualidade. Riker tem publicações bem recebidas, oferece cursos e também é visto em igrejas ministrando palestras. Tanto Andrea quanto Riker orbitam em entidades como o Exodus Brasil, que conquanto tenha assumido uma postura mais comedida e introspectiva nos últimos tempos foi uma catalizador importante para teologia sobre sexualidade no Brasil.

Logo, por que eles não seriam uma referência pra mim se são uma referência para tantos?

Bom, antes de mais nada vale dizer que não é uma indisposição pessoal ou uma antipatia que não me faça reter o que acho bom nos ministérios deles. Creio que pessoas como a Andrea ou o David realmente lançaram um olhar de interesse sobre a questão e estão realmente interessados em fazer algo significativo e são vozes importantes que eu certamente teria o prazer de escutar, debater e conversar se pudesse.

Mas então qual seriam as questões?

Uma resposta pra isso deve recuar um pouco e considerar algo que é prévio a tudo: a dependência teológica da igreja brasileira. A igreja evangélica brasileira é em grande medida o resultado de investidas missionárias das igreja protestantes/evangélicas dos EUA, e mesmo que hoje as denominações no Brasil caminhem por conta própria e governem a si mesmas elas ainda estão a sombra de suas igrejas mães e avós dos EUA e Europa, ao menos no que diz respeito a teologia que consumimos. Podemos dizer que na maior parte do tempo não produzimos necessariamente a nossa teologia, nós sem dúvidas a consumimos, mas não a produzimos, ela chega até nós e quando muito operamos sua manufatura, e mesmo uma teologia brasileira se reporta e se baseia na teologia do que alguns chamam de o Norte Global. Façamos um pequeno experimento, se formos em nossa biblioteca e separarmos nossos livros, sobretudo os que mais norteiam certos debates, entre livros de autores nacionais e autores de língua inglesa, quais estariam em maior número? E se digamos houvessem livros de autores brasileiros em bom número, esses autores estão sendo influenciados por quais outros autores, ideias ou conceitos? Quantos grandes teólogos brasileiros o são pois realizaram seus doutorados em universidades e seminários fora do país e por isso possuem uma bagagem teológica respeitada? Há motivos compreensíveis pra isso. A igreja evangélica brasileira é extremamente jovem quando comparada ao cristianismo europeu ou ainda ao protestantismo norte-americano. A igreja evangélica brasileira tem um pouco mais de 150 anos de existência, e talvez só no últimos 50 vem, para o bem ou para mal, mostrando a que veio. Certamente temos muito potencial e muitos podem concordar que o cristianismo na América Latina, África e Ásia tenderá ao protagonismo nas próximas décadas. Mas ainda que sejamos jovens e vigorosos recebendo a herança acumulada de uma antiga bisavô isso não muda o fato de que essa herança não foi produzida por nós.

Reconhecer nossa dependência pode levar alguns a rejeitar completamente uma teologia entendida como imperialista e partir para uma teologia decolonial, ou ao menos uma teologia que fale a nossa língua, entenda nossos contextos e seja de fato brasileira. De qualquer maneira sempre será inevitável não recorrer ao que foi feito ou está sendo feito lá fora, pois a grande questão não é sobre termos que acessar um teologia de fora, mas que não a estamos acessando completamente.

Há igrejas cristãs debatendo sexualidade humana ao menos desde 1960 pra cá, enquanto algumas dessas discussões na igreja evangélica do Brasil começarem a aparecer em meados da década de 90. Há um fuzo horário teológico acontecendo. Primeiro o debate acontece lá e logo em seguida ele surge por aqui, com algum intervalo de tempo. E se não bastasse esse delay teológico há ainda a parcialidade do que nos chega por aqui. Em outras palavras, há autores que não são traduzidos, há obras que não conhecemos, há discussões que não são ventiladas e questões que são abafadas. Há quem realmente opere para garantir que certas discussões são cheguem por aqui, e como dependemos do mercado editorial que por sua vez está a serviço de agentes teológicos específicos, então só acessamos aquilo que alguém julga que é necessário acessar.

Mas o horizonte é de mudança com um mercado editorial que vem se diversificando e sobretudo com a ascensão do acesso a internet e as múltiplas plataformas que permitem que conteúdos e informações diversos possam ser acessados por um maior número de pessoas. Esse fenômeno permitiu que o Calvinismo se popularizasse no Brasil nos últimos anos, não porque um presbiteriano bateu a sua porte te chamando para o culto, mas porque em algum momento um vídeo no YouTube te fez conhecer um pastor reformado.

Mas já estamos nos afastando. Onde entra o debate sobre sexualidade aqui?

A sexualidade tem se tornando um tema da ordem do dia e há muito interesse na questão, pessoas que demonstrem alguma desenvoltura falando disso podem facilmente ganhar destaque e consolidarem seus ministérios, é o caso da Andrea ou do Riker. Ao mesmo tempo isso ocorre na escassez e na dependência teológica, logo precisaríamos qualificar mais o debate, e calhou que nos EUA há um interesse renovado pela questão da sexualidade, principalmente entre os reformados. Desde então autores como Rosaria Butterfield , Kevin DeYoung, Sam Alberry e Jeckie Hill Perry vem sido conhecidos pelo público brasileiro. Tópicos da teologia reformada também criaram o pano de fundo e o substrato discursivo mais identificável nos debates, os conceitos-chave são cosmovisão, adoração e idolatria mesmo que possam (e na verdade são) ser usados e aplicados de maneiras arbitrárias.

Tanto a Andrea quanto o Riker se conduzem em discursos que conquanto possam ser porções razoáveis ainda assim se constroem em discursos de frase de efeito e jargões. Isso dá aos seus discursos a aparência de profundidade teológica, quando na verdade eles ficam apenas em certas superfícies. Retornei a ter essa percepção assistindo a uma das palestras mais recentes da Andrea disponibilizadas no YouTube.

Ao longo de sua fala Andrea recuperou as circunstâncias que desencadearam seu interesse pela sexualidade, e mencionou o episódio em que três jovens rapazes gays haviam se convertido na igreja que frequentava. Os rapazes em um certo momento começaram a lidar com os conflitos de ainda serem gays, e que começaram uma série de aconselhamentos com o pastor que por fim não gerou efeito e os rapazes deixaram a igreja. Em um espaço para falas Andrea recebeu uma pergunta do porque ela acreditava que aqueles rapazes haviam deixado a igreja, o que havia faltado a igreja para ter oferecido meios para aqueles rapazes permanecerem. Andrea então diz que não saberia ao certo dizer porque, até que decide apelar para algo mais definido: “…Eu acho que faltou um plano de ação pra enfrentar as inconsistências nas crenças que esses meninos carregavam…” se referindo aos chamados ídolos do coração que os rapazes possuíam. Andrea simplesmente opta pela culpabilização dos rapazes, ou seja, eles saíram pois tinha ídolos no coração que não haviam sido confrontados, mas me pergunto se não ocorreu a Andrea pensar que talvez foram depositadas expectativas sobre os rapazes, expectativas de que a fé em Cristo opera mudanças e transformar gays em héteros, um tipo de senso comum corrente entre os evangélicos. Uma teologia da prosperidade afetiva. Talvez aqueles rapazes, como muitos outros, não foram consolados com a certeza de que há coisas que acompanham a vida dos verdadeiros crentes e isso não põe a prova sua conversão. Andrea preferiu optar pela formulação teológica com ares sofisticados de que o problema foram os “ídolos do coração”. Uma resposta genérica para um problema complexo.

Ao longo do vídeo Andrea nem sempre está estruturando sua teologia, mas apontando para conceitos como a fórmula recorrente na teologia reformada, Criação-Queda-Rendenção, sem contudo aplicar os conceitos devidamente. Andrea por vezes ainda parece estar fazendo perguntas pra si do que oferendo respostas. Andrea e David por vezes se utilizam do linguajar da teologia reformada, talvez por acharem que ele sofistica sua maneira de abordar a sexualidade e permite que eles consigam transitar com mais aceitabilidade em certos espaços, mas sinto que há inconsistências. Há que se reconhecer que a teologia reformada de que se servem é apenas uma maneira de abordar questões como identidade, idolatria, celibato, concupiscência, etc..

O que me faz responder a questão fundamental. Por que pessoas como a Andrea e Riker (poderia incluir também Pedro Dulci ou o Guilherme de Carvalho) não são referências pra mim? Pois eu estou olhando o quadro como um todo.

Desde 2016 venho olhando para as discussões sobre sexualidade fora do Brasil, ou onde os atravessadores da teologia vão buscar alguma referência parcial e voltar com seu espólio para cá. Ao chegarem aqui se apresentam como opinião qualificada, mas aqueles que podem ir até a fonte acessar as reflexões de termos mais amplos.

Peguemos o exemplo de Rosaria Butterfield, a autora além de se consolidar nos guetos mais conservadores (em alguns casos fundamentalistas) da teologia reformada nos EUA foi se tornando uma referência também no Brasil. Rosaria tem três dos seus principais livros publicados por aqui, algo que nem todo autor tem a chance de conseguir. Querem realmente torná-la a única voz falando sobre fé e sexualidade a partir de uma perspectiva reformada. Mas quando consideramos a Rosaria dentro de seu contexto vamos descobrir que ela tem interlocutores, ela está disputando nas arenas teológicas, ela não está só respondendo as teologias afirmativas ou feministas, mas também está no páreo com autores como Wesley Hill ou Nate Collins para prover uma teologia tradicional sobre sexualidade nos círculos teológicos. Rosaria Butterfield é traduzida no Brasil, seus interlocutores e pares não.

Dessa forma boa parte dos que falam sobre sexualidade no Brasil ainda possuem um repertório restrito e limitado, e aqueles que conseguem olhar para fora desse quadro limitado podem encontrar outras vozes e discussões mais maduras sendo feitas.

Olhar para esse quadro geral não significará que as questões se resolverão mais fácil, pelo contrário, quando o debate é amplo, profundo e democrático significa que temos muitas pessoas qualificadas aptas para contribuir para a questão. Quando temos os pousos e os mesmos falando, e com tamanha pretensão de serem o únicos, tudo parece fácil, tudo está resolvido, já temos todas as respostas.

Quero pensar que teremos melhores condições de não dependermos das mesmas pessoas, pois quando elas se tornam as únicas vozes existentes elas mesmo se acomodam e se contentam em serem um oráculo, elas acabam já não se desafiando mais, elas não querem aprender. Elas sabem que podem repetir o mesmo jogo de bravatas e frases de efeito.

Por isso devemos sempre ter em mente que demos olhar o quadro geral.

No século XVI Hieronymus Bosch pintou um dos quadros mais extraordinários que existem: O Jardim das Delícias Terrenas. O quadro é dividido em três partes, começa retratando a criação do paraíso e da humanidade e é concluído com uma imagem angustiante do inferno. O que enriquece o quadro são seus inúmeros detalhes que merecem um olhar atento e particular, ao mesmo tempo há que se considerar o que a pintura está transmitindo como um todo. A experiência do quadro só é possível quando estamos olhando para o quadro geral.

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