O que há de problemático na teologia de Andrea Vargas?

Jared Victor
39 min readOct 21, 2024

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No que se refere às coisas sacrificadas a ídolos, reconhecemos que todos somos senhores do saber. O saber ensoberbece, mas o amor edifica. Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito, não aprendeu ainda como convém saber. Mas, se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele.

(I Coríntios 8: 1–3).

  1. Introdução

Andrea Vargas publicou seu primeiro livro, O Coração Oculto do Sexo, com o objetivo de que muitas de suas referências teológicas e prática pastoral pudessem estar estruturadas e acessíveis ao público de leitores que não acessa seus cursos ou apenas a conhecem por suas palestras gravadas e disponibilizadas no YouTube, o que é o meu caso. Andrea tem hoje um ministério vocal e influente quando se trata de discussões teológicas sobre sexualidade, sua presença é quase incontornável para qualquer um que se interesse pelas questões.

Li seu livro e tenho vários reparos à sua teologia e prática pastoral, não farei uma resenha ampla sobre ele, o que me seria tão desgastante como foi a própria leitura — que me renderam momentos asfixiantes de crise de ansiedade — , farei, por isso, uma análise de um apêndice final da obra, que fornece uma espécie de roteiro de aconselhamento com aplicações das proposições que Andrea estabeleceu ao longo do livro. Mesmo não considerando a totalidade do livro, creio que este apêndice fornece uma síntese das ideias que Andrea desenvolveu ao longo de sua obra (vale destacar que o livro de Andrea em muitos momentos anda em círculos prolixos) e permitem compreender muito de sua abordagem e, por conseguinte, a natureza problemática de seu discurso.

Na segunda parte do artigo, apresento algumas discussões filosóficas e teológicas que antecedem o debate sobre sexualidade e que esclarecem melhor a natureza de certas discordâncias. Em um terceiro momento, faço um levantamento de destaques ao livro de Andrea, em especial de seu roteiro de aconselhamento. A quarta parte é o que me ocorreu ser uma alternativa bíblica a certas abordagens de Andrea em seu roteiro. A quinta parte é onde posso realmente mostrar os problemas na teologia de Andrea e, por fim, faço algumas conclusões.

2. Aconselhamento Bíblico e o Pressuposicionalismo.

Antes de mais nada, é válido ressaltar que muito das minhas discordâncias existentes na teologia de Andrea, e de tantos outros autores reformados, depende de escolhas filosóficas e teológicas anteriores ao debate sobre sexualidade, destacando dois elementos que estão na base da questão: o pressuposicionalismo e o aconselhamento bíblico. O pressuposicionalismo é uma escola epistemológica e teológica desenvolvida pelo teólogo reformado Cornelius Van Til, que se tornou bastante influente entre os calvinistas de orientação evangélica e fundamentalista. Em linhas gerais, essa vertente da teologia defende um entendimento sobre a maneira como nós nos relacionamos com a revelação divina e como a compreendemos. Para os pressuposicionalistas, todo conhecimento depende de pressupostos assumidos antes de qualquer coisa, e o pressuposto primordial de tudo é Deus como está revelado nas escrituras, tudo o mais decorre da minha crença em Deus. Essa compreensão destoa de um entendimento clássico de que Deus pode ser deduzido a partir da revelação natural disponível na realidade criada, logo, é possível partir inicialmente da criação e chegar à conclusão da existência do Deus que também se revela especialmente nas escrituras. Uma das implicações da escola pressuposicional é a suspeita em relação àquilo que chamamos de Teologia Natural e Graça Comum, ou simplesmente a recusa de tudo que seja “secular” e não bíblico como algo qualificável.

Outro elemento importante é o aconselhamento bíblico, que por sua vez é influenciado, em grande medida, pela escola pressuposicionalista. O chamado aconselhamento bíblico é um movimento que surgiu nos redutos evangélicos reformados na década de 70 como uma resposta conservadora à crescente influência da psicologia nas práticas de aconselhamento pastoral, sendo um de seus principais proponentes o pastor presbiteriano Jay Adams. O aconselhamento bíblico acredita que as escrituras são suficientes no tratamento de todos os dilemas existenciais da condição humana, e isso acontece de tal maneira que recorrer a outras formas de tratamento em questões como depressão, ansiedade, crise de pânico, etc, são, na melhor das hipóteses, alternativas parciais e desaconselháveis, pois a bíblia oferece uma solução real para todas essas mazelas.

Desde a fundação do aconselhamento bíblico às novas gerações de conselheiros bíblicos, houve diversos ajustes quanto a certos aspectos da teologia do movimento, o que permite que muitos conselheiros bíblicos assumam abordagens mais ou menos próximas de uma visão integradora com a psicologia, contudo, no geral, muito de seu núcleo duro tende a permanecer o mesmo. O aconselhamento bíblico tende a enfatizar a pecaminosidade e a responsabilidade humana como origem dos problemas, outras de suas ênfases recaem na busca por uma cosmovisão bíblica adequada e, por isso, muitos conselheiros bíblicos enfatizam a percepção bíblica sobre algo mais do que qualquer outra coisa, posicionamento tipicamente herdado do pressuposicionalismo e sua ênfase nas crenças mais do que na própria realidade objetiva em si.

Esses dois elementos constituem a base de boa parte da teologia reformada atual, e toda discussão sobre um tema qualquer de alguma maneira dependerá de uma escolha epistemológica prévia. É por isso que antes de falarmos sobre sexualidade propriamente, temos que ter em mente que nem sempre compartilhamos um terreno comum teológico como meio de reflexão. Andrea Vargas assumiu para si o aconselhamento bíblico e todo o arcabouço teológico que o acompanha, eu, por outro lado, não compartilho dos mesmos entendimentos teológicos e entendo que isso constitui parte significativa de certos desencontros. Pressuposicionalistas e conselheiros bíblicos só se sentem confortáveis pregando para convertidos e dentro de seus próprios termos. Essa teologia recusa reflexões decorrentes de uma teologia natural ou ainda do conhecimento secular, ela não reconhece muito do que chamamos de graça comum. É uma teologia que não consegue apontar para o deus desconhecido ou refletir com os descrentes citando poetas, algo que Paulo fez em Atenas.

Outras diferenças prévias ainda consistem na própria fundação do debate dentro dos limites de certas fronteiras da teologia reformada. Uma teologia wesleyana, anglicana ou mesmo católica pode chegar a outras conclusões quando colocadas ao lado de uma teologia reformada. Mesmo entre o próprio arraial reformado podem haver consideráveis nuances e, por isso, sempre recomendo o relatório monumental e exemplar sobre sexualidade humana aprovado em 2022 pela Igreja Cristã Reformada da América do Norte (CRCNA), denominação evangélica calvinista de orientação holandesa com uma profunda tradição de diálogo profundo com a cultura.

Mesmo assim, como prova de que quero discutir as ideias de Andrea sem levar em conta debates epistemológicos e filosóficos complicados e também mostrar como tenho em alto lugar o valor das escrituras, quero refletir levando em conta o que a escritura me comunica. Também quero mostrar uma ironia curiosa: muitos conselheiros bíblicos parecem ser bíblicos até um certo ponto, levando em consideração certas passagens das escrituras enquanto desconsideram outras. Se realmente estamos sendo bíblicos, então consideremos o que toda a escritura pode nos dizer.

3. “Notas sobre aconselhamento”

Em um apêndice sobre aconselhamento bíblico, Andrea consegue sintetizar muito de sua teologia e também nos oferece um roteiro como conselheira bíblica. Ela alega que não sabe se escreverá um livro sobre aconselhamento bíblico com foco na sexualidade e, por isso, nos apresenta sua trilha como conselheira, o que é inusitado, já que seu livro é justamente sobre sexualidade, repleto de referências, autores e discursos e práticas próprias do Aconselhamento Bíblico. Andrea começa definindo a natureza de seu aconselhamento:

“As primeiras informações que preciso saber são: por quem e para que estou sendo procurada? Antes de aconselhar alguém, costumo enfatizar que sou conselheira bíblica e que a leitura que faço da realidade se estabelece a partir das Escrituras, sob a influência da Reforma Protestante e pautada nos valores judaico-cristãos. Reconheço que existem outros olhares sobre a sexualidade humana, mas o meu repousa sob a perspectiva da Criação, Queda, Redenção, Consumação e antropologia bíblica. Sem isso bem delimitado, a abordagem fica sem sentido caso a pessoa que procura por aconselhamento bíblico não seja cristã almejando santificação.” (p.161)

Andrea demonstra uma das grandes características da influência pressuposicionalista no aconselhamento bíblico: recuar em discutir questões fora dos limites rígidos da revelação especial das escrituras. Ao definir que só realiza aconselhamentos dentro de uma cosmovisão radicalmente bíblica, Andrea, e muitos conselheiros bíblicos, estão dizendo que contribuições filosóficas, psicológicas, sociológicas, jurídicas e até médicas estão sendo desconsideradas aqui ou facilmente colocadas como mínimas e sem grande relevância. Qualquer dado, por mais verdadeiro e razoável que seja, vindo de algumas dessas outras formas de conhecimento, não entra no circuito e na conversa. Não há diálogo com o conhecimento natural, social ou com a cultura em geral, mesmo que submetendo-os às escrituras. Podemos dizer que o conselheiro bíblico não tem condições de falar do “deus desconhecido” ou ainda de raciocinar com incrédulos em seus próprios termos, citando poetas gregos, como fez o apóstolo Paulo em Atenas. O conselheiro bíblico se limita a pregar apenas para os convertidos e sempre nos seus próprios critérios daquilo que é “bíblico”.

Mas então, qual o papel do aconselhamento e conselheiro bíblicos? Ela nos conta:

“Porque o aconselhamento bíblico visa a Cristo ser glorificado na vida dos aconselhados, seu objetivo principal é eternizá-lo em quem busca orientação, e não modificar o desejo e/ou o comportamento sexual. A atuação do conselheiro bíblico reside em estar ao lado de irmãos que queiram trazer glória a Cristo, mas estejam impossibilitados por questões que muitas vezes não entendem e que talvez perpassem pela sexualidade.” (p. 161)

É notável que, por ser uma abordagem que tende a apontar motivações do coração, o aconselhamento bíblico não se parece em um primeiro momento com um discurso moralizante de comportamentos e que procura transformar homossexuais em heterossexuais, o que não o faz menos questionável por outras razões. Andrea segue dizendo:

“…Infelizmente, é comum observar cristãos terem uma perspectiva fragmentada sobre si, acreditando que sua sexualidade não dialoga com suas crenças. Talvez por isso que encontramos tantas pessoas frustradas com o evangelho: acham que Jesus veio exclusivamente para redimir a sexualidade quando, na verdade, veio para reconciliar até a sexualidade a Deus, a começar pelo coração” (p. 161–162)

Ao dizer que todo dilema sexual é um dilema da redenção do coração, o discurso de Andrea pode recair na especulação rigorosa da conversão de alguém, afinal, se um problema sexual é antes de mais nada um problema do coração, logo, dilemas sexuais são problemas daqueles que não entregaram seu coração a Cristo.

Andrea também recusa o que seria uma visão que secciona as pessoas de um modo a enxergar os dilemas da vida, e por conseguinte os dilemas sexuais, como dilemas comportamentais de administração de desejos. Sua resposta a essa fragmentação é apelar para seu extremo oposto: Não existem dilemas sexuais, existem apenas problemas de crenças, algo ilustrado com um de seus mantras mais recorrentes: “O problema não é o que acontece na cintura pra baixo e sim o que acontece da cintura pra cima”.

Andrea estrutura sua trilha de aconselhamento a partir de uma tríade de identificação das percepções do aconselhado onde o conselheiro investiga seu mundo ideal, a linha do tempo e o ciclo de crenças. Sobre o ciclo de crenças, Andrea nos diz:

“…Acredito que todo ser humano, consciente ou não, adota alguma idealização do mundo perfeito. Isso não é diferente com os cristãos que aconselhamos. Todos têm, em seu coração, a ideia de que, “se determinadas coisas acontecem, a vida seria melhor”. É função do conselheiro bíblico descobrir quais são essas coisas a fim de conferir com seu respectivo aconselhado se elas são cristocêntricas ou não. A razão disso é que pode ser devastador passar a vida toda acreditando em algo que Deus nunca disse, exigiu e nem se comprometeu a realizar.” (p. 162–163)

Andrea se alinha mais uma vez à ideia de que as questões são mais sobre as percepções que temos sobre elas do que sobre elas mesmas. Andrea, então, nos apresenta um exemplo de aplicação teológica na vida de um aconselhando, onde espera aplicar sua trilha de aconselhamento:

“Por exemplo: imagine um rapaz acreditando que o amor do pai eliminará seu desejo por pornografia homossexual. No mundo ideal dele, o dia em que o pai conseguir preencher seu “vazio”, suas emoções e seus desejos serão supridos, assim ele deixará de cobiçar outros homens. Ou seja, o amor do pai santificará o filho. O problema é que, biblicamente, isso não faz o menor sentido. Notou que, se não formos atentos, corremos o risco de confundir o real problema é tratar uma criatura como se fosse o redentor? Em outras palavras. Jesus Cristo nem constava no centro desse mundo ideal do rapaz.” (p.163)

Ao analisar o que julga ser o mundo ideal do rapaz, Andrea faz um diagnóstico: O aconselhado não levava em conta Jesus em sua vida, pois acreditava que o amor do pai poderia reparar sua atração por homens e seu consumo de pornografia, ou seja, para ela, esse rapaz não buscava um mundo ideal cristocêntrico, ela ainda completa:

“..duvide de um mundo ideal sem Cristo no centro e verifique o que o seu aconselhado de fato quer. Se ele não quiser um mundo que convirja para Cristo, respeite e reavalie se ele realmente deseja um aconselhamento bíblico, pois provavelmente esse não seja o caso. Se for avance.” (p. 163)

Na mínima reticência ou incompreensão por parte do aconselhado, o conselheiro bíblico parece desejar soltar sua mão em razão de um suposto descompasso de crenças. O aconselhado deve estar rigorosamente alinhado ao que o conselheiro julga ser “a busca por ter Cristo no centro”, mesmo que algo tão subjetivo, e por vezes vago, nem sempre esteja claro para o aconselhando e, em certo sentido, para o próprio conselheiro.

O próximo passo é traçar uma linha do tempo do aconselhando, ou seja, colher “relatos da sua história de vida para compreender o ambiente que a influenciou na sua formação”. Qual a utilidade desses relatos biográficos e da trajetória do aconselhando? Segundo Andrea, para “identificar a construção da idolatria na vida”. No relato do exemplo mencionado, a linha do tempo do rapaz esclareceu “ a relação consigo, com as pessoas, com Jesus e com a pornografia”. Vasculhar a vida de um aconselhando parece uma postura um tanto quanto contraditória em relação ao próprio sistema teológico que Andrea constrói até aqui, como quando define um dos conceitos fundamentais de sua teologia, o da Idolatria Afetivo-Sensorial. Segundo Andrea, todo problema de ordem sexual pode ser entendido como sendo o resultado da idolatria, aqui particularmente chamada por ela de Idolatria Afetivo-Sensorial (IAS). Ela define o conceito como sendo a “expressão do querer mais para ser alguém e chegar ao paraíso, elegendo a sexualidade como meio para se materializar” (p. 89). Para Andrea

“O conceito IAS permite compreendermos que os problemas que muitos (cristãos) acreditam ter de ordem sexual são, antes de mais nada, de cunho religioso, pois estão ancorados no campo da adoração. Na prática, o conceito nos ajuda a perceber que a força deles não concentra nas emoções ou em algum episódio da vida da pessoa, por mais marcantes e graves que possam ter se configurado..” (p.90)

Em um dos pontos altos de seu livro, Andrea recusa a ideia de que episódios na vida de alguém são decisivos, como origens de um dilema ou questão. Veja que uma compreensão como essa, típica dos círculos de aconselhamentos bíblicos, tende a minimizar ou excluir a influência de episódios significativos na vida de alguém. Traumas, abalos e abusos não causariam impacto de fato ou podem ser facilmente resolvidos “em Cristo”. Retornando à trilha de aconselhamento, Andrea decide oportunamente, mesmo tendo descartado esses fatores anteriormente, considerar a linha do tempo e os episódios da vida do aconselhando:

“Compreender a linha do tempo permite averiguar, com mais profundidade, qual é o envolvimento do aconselhado com Jesus e sua Palavra. Além disso, mais aspectos da sexualidade podem ser levados nessa etapa. No exemplo do rapaz citado, a relação dele com o pai e com a mãe, os abusos, Deus, a religião, as dores e faltas foram apontados com mais detalhes nesse momento. Esse levantamento histórico é fundamental para conhecermos o coração da pessoa aconselhada a fim de amá-la e servi-la melhor com foco na glória de Deus.” (p. 164)

O que segue a partir disso é uma colheita da linha do tempo, é a percepção sobre o ciclo de crenças do aconselhando, nesse momento

“A intenção é compreender como a dinâmica do coração dele se estabelece, pois todo comportamento é uma consequência de emoções e de pensamentos motivados por crenças (sobre Deus) determinadas no coração.” (p. 164)

Aqui se constata um determinismo severo sobre o lugar dos afetos e emoções na experiência humana, sem levar em conta seu próprio caráter fisiológico e cerebral de atuação no corpo. A teologia das emoções de Andrea não dá espaço para compreensões mais complexas sobre como afetos e emoções operam em nossa vida e nosso organismo. Andrea, no fim das contas, tem dificuldade em conciliar diferentes olhares e perspectivas, acomodando-as em uma visão mais complementar do lugar das emoções, ao invés disso, sempre opta pela explicação única, ainda que aponte outras razões possíveis. Segundo ela:

“Comportamentos, emoções, pensamentos e crenças anunciam nossa real teologia. Percebo um avanço no meio cristão para reconhecer a existência de emoções e pensamentos como molas propulsoras para o comportamento. Entretanto, também noto um perigoso descuido em identificar, biblicamente, as crenças.” (p.164)

A percepção determinista de Andrea sobre a natureza das crenças é de tal maneira que ela acredita que pessoas que temem o que os outros pensam sobre suas sexualiades podem nem ser cristãs de fato, pois não estariam sendo motivadas pelas razões certas:

“Chamo sua atenção para o seguinte aspecto: não presuma que alguém seja convertido por ter nascido, crescido e servido na igreja. Há muitos cristãos evangélicos nominais que nunca experimentaram o novo nascimento. Por isso, acredito que todo conselheiro deva estar pronto para evangelizar seu aconselhado. No campo da sexualidade, muita gente envolvida com a igreja procura aconselhamento, mas não necessariamente está envolvida pelo amor a Deus. É comum pessoas procurarem por aconselhamento movidas pelo temor a (opinião de) homens, por exemplo: “O que vão pensar a meu respeito quando souberem sobre minha sexualidade?”. Diante disso, conselheiros precisam investigar as verdadeiras razões que trazem alguém para o aconselhamento sem receio de a “perderem”. Se a busca pelo aconselhamento não for o amor a Cristo, será apenas uma questão de tempo até seu aconselhado abandonar a jornada de santificação.” (p.163–164)

A insensibilidade de Andrea faz com que ela perca de vista uma das realidades mais angustiantes para pessoas LGBTQIA+: o medo de serem descobertas e as consequências disso. Quando jovens LGBTQIA+ percebem o quão diferentes são, rapidamente percebem que isso pode representar atritos entre a família, amigos e igreja, muitos perderam e têm muito a perder ao serem francos sobre isso. Esses temores ilustram como esses espaços e lugares nem sempre estão sensíveis a essas pessoas e aos seus questionamentos, e se respondem isso, recebem em troca indiferença ou hostilidade. Andrea desconsidera tudo isso ao lançar dúvidas sobre a conversão de alguém por temer essa realidade não-acolhedora e de desconfianças. Ao enfatizar as crenças pessoais, ela desconsidera o que muito da realidade e entorno têm a dizer sobre certos dilemas pessoais.

Andrea reafirma seu diagnóstico algumas vezes:

“..duvide de toda proposta redentiva sem o Redentor Jesus Cristo no centro. Observe: Cristo até aparece na história de vida do rapaz, mas não será central no processo de santificação se ele receber o amor do pai. Ou seja, o amor do pai fará com que ele não mais precise de pornografia masculina. Se for isso mesmo, a redenção dele será mérito do pai, e não de Cristo. Gravíssimo, pois não se enfrenta idolatria com idolatria e sim, com adoração.” (p. 165)

Após determinar que os problemas do rapaz giravam em torno essencialmente da falta de Cristo como o centro de sua vida, Andrea também alega que, como conselheira bíblica, ela não espera fazer com que as pessoas sejam necessariamente convencidas de práticas sexuais destrutivas:

“O Conselheiro Bíblico não pretende convencer o aconselhado de sua conduta sexualmente imprópria. Seu trabalho consiste em ajudá-lo a identificar crenças estranhas no seu coração, contaminadas por mentiras a respeito de Deus. Saber verdades sobre Deus não é o mesmo que confiar nessas verdades. Apesar de óbvia, a religiosidade nos confunde a respeito dessa distinção. Saber que Deus é bom é diferente de crer que Ele seja bom para mim a ponto de me fazer descansar nessa verdade.” (p.166)

Finalmente, além de não procurar alterar comportamentos problemáticos, não há uma solução definitiva para o que Andrea chama de Idolatria Afetivo-Sensorial, o que não parece ser a preocupação primária do próprio conselheiro, que está interessado nas crenças do aconselhado:

“Quanto tempo levará para a IAS ser desmantelada na vida dos aconselhados? Não sei e nem acredito que isso importe. O que realmente importa é a perseverança na caminhada rumo à santificação progressiva. Em resumo, o que tenho feito é sugerir encontros semanais de até uma hora, em local e horários seguros, crendo que, pelo poder do Espírito Santo, a Palavra de Deus não volta vazia sem cumprir sua missão destinada pelo Senhor.” (p.167)

4. Fazendo um caminho melhor: O modelo em Gálatas de avaliação de crenças.

Todos podem concordar que nossas crenças são imprescindíveis para a maneira como vemos o mundo, mas nem sempre é uma tarefa fácil estabelecer uma relação entre as crenças de alguém e as suas implicações imediatas na vida dessa pessoa. Assim como Andrea, também creio que crenças equivocadas, parciais ou mal informadas nos prejudicam. Da mesma forma, o apóstolo Paulo precisou lidar com ensinos falsos, enganosos ou não adequados ao longo do seu ministério, e em seus escritos podemos identificar algumas maneiras pelas quais o apóstolo administrou isso de modo a não somente espezinhar as crenças de crentes, como se isso fosse a única coisa quando se trata de colocar crenças à prova.

Podemos observar Paulo lidando com situações que envolvem crenças a partir de três frentes de consideração:(1) Quem está sendo exposto a esse ensino e aceitando-o como válido; (2) A própria natureza das crenças que estão sendo ensinadas. (3) Aqueles que são os agentes propagadores das crenças e ensinam-as aos outros. Dessa forma, o apóstolo lida com um problema de forma ampla e justa, considerando os vários aspectos da questão de uma maneira a não ser demasiado com ninguém, ao mesmo tempo em que examina e julga uma crença que está sendo ensinada e aceita na igreja.

4.1 Quem está sendo exposto a esse ensino e aceitando-o como válido?

Quando Paulo escreve uma carta aos Gálatas, o apóstolo demonstra sua preocupação com o fato dos cristãos das igrejas daquela região estarem admitindo um falso ensino, contrário ao que ele havia os anunciado: “Maravilho-me de que tão depressa passásseis daquele que vos chamou à graça de Cristo para outro evangelho” (Gálatas 1:6). Paulo se refere ao ensino judaizante que exigia dos crentes a submissão às antigas leis prescritas por Moisés como forma de serem justificados. Ao longo da carta, o apóstolo expõe sua defesa do evangelho genuíno de Jesus, desqualificando os falsos mestres e seus ensinos, e questionando aqueles que estavam crendo no falso evangelho. Quanto aos últimos, o apóstolo os exorta e chama-os de insensatos (3:1) por perderem de vista seu ensinamento.

Como parte de sua chamada de atenção aos cristãos gálatas, Paulo os vê como imaturos e tolos diante da situação de serem persuadidos tão facilmente, incapazes de resistir ao falso ensino, necessitando, portanto, da repreensão cuidadosa como de um pai, ou melhor, para ilustrar a imaturidade da igreja, Paulo se coloca no lugar de uma mãe: “Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós” (4:19). Paulo se enxerga como parindo-os novamente à medida que precisa ensiná-los uma segunda vez, como crianças ingênuas que ainda estão amadurecendo até assumirem a estatura de crentes maduros em Cristo. A imaturidade é um tema recorrente nas epístolas paulinas como uma razão para erros e incompreensões por parte dos crentes. Por exemplo, ao escrever aos cristãos em Corinto, Paulo os descreve como incapazes de comer o alimento sólido dos que já cresceram: “E eu, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais, como a criancinhas em Cristo. Leite vos dei por alimento, e não comida sólida, porque não a podíeis suportar; nem ainda agora podeis” (I Coríntios 3.1–2). A igreja de Corinto era facciosa e dividida em partidos, o que Paulo chamou de imaturidade e meninice, e, por isso, Paulo nem poderia avançar em algo mais profundo em seu ensino com eles. O apóstolo não parece acreditar que a imaturidade os exime de serem responsabilizados, mas certamente o faz reconhecer que é inevitável que ele tenha que assumir novamente a tarefa de os gerir e parir novamente, até o momento em que não precise mais adverti-los continuamente, pois alcançaram maturidade.

Por vezes, alguns parecem ser imprudentes pois o que lhes falta é exatamente a maturidade dos experientes e maduros, e, por serem imaturos, precisam ser assistidos pelos mais sábios até conseguirem ter mais discernimento próprio. É nesse espírito que Paulo acredita que o presbítero não deve ser neófito (I Timóteo 3:6) e também recomenda que as mulheres mais velhas com bom testemunho instruam e sejam referenciais para as mais jovens (Tito 2:3–5). Paulo é uma figura de referência para o jovem pastor Timóteo, ajudando-o e instruindo-o como uma figura quase paternal para um pupilo facilmente subsumível, por ser jovem, e tido, por isso, como imaturo. A imaturidade parece levar Marcos a desistir no meio da primeira viagem missionária de Paulo, o que faz o apóstolo se indispor com sua presença em uma segunda viagem (Atos 15:37–41).No entanto, anos depois, o mesmo Marcos, outrora recusado por Paulo, é solicitado por ele como alguém útil para o seu ministério (II Tm 4:11). O jovem é vulnerável ao engano e à imoralidade também por não ter juízo ( Provérbios 7:6–9).

Ao julgar crenças, Paulo definitivamente põe à prova aqueles que são ensinados e exorta-os quando acredita que esses estão sendo tolos e imaturos diante de um ensino questionável. Contudo, ele entende que cristãos estão em um processo de amadurecimento e que, por isso, estão suscetíveis ao longo do percurso. Essa é a razão pela qual deve-se ser paciente com aqueles que ainda aprendem, pois, como veremos a seguir, o apóstolo também se preocupa com o próprio conteúdo das crenças e com seus propagadores.

4.2 As crenças por si mesmas

“Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão. Eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. E de novo protesto a todo o homem, que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei. Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. Porque nós pelo Espírito da fé aguardamos a esperança da justiça. Porque em Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão tem valor algum; mas sim a fé que opera pelo amor.” (Gl 5:1–6)

Uma forma do apóstolo Paulo avaliar uma crença é oferecer uma resposta a essa crença. A carta aos gálatas é toda ela uma defesa da fé verdadeira, desqualificando o discurso judaizante. Nela, Paulo encadeia argumentos e justificativas que demonstram como o falso ensino não é compatível com o verdadeiro evangelho para liberdade cristã.

Em outro momento, Paulo avalia a natureza de um discurso ao responder os Coríntios sobre perguntas sobre o casamento. Sua primeira intervenção no tema começa com o que muitos acreditam ser uma citação de um interlocutor da própria igreja que chamou sua atenção na carta endereçada ao apóstolo: “Ora, quanto às coisas que me escrevestes, bom seria que o homem não tocasse em mulher” (I Coríntios 7:1). A sentença que diz que “bom seria que homem não tocasse em mulher” não seria propriamente de Paulo, ele a realça e a partir dela segue sua linha: “Mas, por causa da fornicação, cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu próprio marido.” (I Coríntios 7:2).

Objetivamente podemos avaliar uma crença colocando a própria crença à prova, seja considerando-a não bíblica, logicamente inconsistente, ou duvidosa, dessa forma, tanto aqueles expostos a ela têm a chance de reverem seu apoio, quanto os próprios propagadores dela podem ser desafiados em seu ensino. Essa avaliação do que está sendo dito ou ensinado é o que torna elogiosa a postura dos bereanos que examinavam o que era dito, comparando o que ouviam com as escrituras. Paulo também escreve aos tessalonicenses recomendando que eles “Não tratem com desprezo as profecias, mas ponham à prova todas as coisas e fiquem com o que é bom.” (I Tessalonicenses 5:20–21).

No entanto, nem tudo pode ser considerado um falso ensino quando os próprios cristãos discordam em diversos aspectos teológicos sem os considerarem propriamente um ensino enganoso. A forma do batismo e diversidade de liturgia não seriam portanto um falso ensino, mas uma percepção diferente dentro dos limites do que não é essencial à fé cristã. É verdade também que a fronteira daquilo que é falso ou só diferente nem sempre é a mesma para todos.

4.3 Aqueles que propagam um falso ensino

Finalmente, aqueles que ensinam coisas enganosas ou equivocadas são levados em conta na avaliação de crenças, porque eles são os agentes que disseminam esse ensino, ou seja, o engano provém deles. Escrevendo aos Gálatas, Paulo os questiona: “Vós corríeis bem; quem vos impediu de continuardes a obedecer à verdade?” (Gálatas 5:7), anteriormente Paulo retornava a perguntar: “Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado?” (Gl 3:1). Há um interesse em levar em conta não apenas a ingenuidade dos que acreditavam em algo, mas também em quem eles estavam confiando sua crença.

O apóstolo Paulo descreve falsos mestres como aqueles que, “mediante palavras suaves e bajulação, enganam o coração dos ingênuos” (Rm 16:18). Paulo destaca que as pessoas mais vulneráveis ao falso ensino são ingênuas, inexperientes e desassistidos por alguém que possa fortalecê-los com boa instrução, logo, ao encontrarmos aqueles que creem em algo duvidoso, podemos nos perguntar se eles o fazem por pura ignorância e tolice, ou ainda porque o falso mestre reivindicando ter autoridade conquista a confiança daqueles que o ouvem. Paulo chega a mencionar que mesmo se um anjo aparecesse pregando outro evangelho que seja maldito.

Todo ensino equivocado ou parcial provém de um falso mestre? Certamente que não. Por vezes, aqueles que ensinam algo questionável por alguma razão o fazem por vários motivos e motivações — alguns realmente parecem limitados por sua falta de conhecimento ou experiência, como é o caso de Apolo, mostrado como um conhecedor das escrituras que ensinava de forma entusiasmada sobre Jesus. Mesmo assim, Priscila e Áquila julgam necessário instruí-lo de forma privada sobre aquilo que Apolo ainda não parecia conhecer (Atos 18:24–26). Escrevendo aos Filipenses, o apóstolo fala daqueles que pregam o evangelho por razões duvidosas (Fp 1:14–18), mesmo assim, Paulo se alegra, pois o evangelho está encontrando um caminho para ser anunciado.

Aqueles que ensinam coisas equivocadas podem eles mesmos serem chamados a responsabilidade de ajustarem suas crenças, e assim não porem em risco a audiência cativa que os toma por pessoas qualificadas e dignas de confiança quanto ao que dizem e ensinam.

Ao considerar as crenças através dessas três frentes, podemos ter mais chances de apontar não apenas um ensino duvidoso, mas também questionar aqueles que o divulgam e chamar a atenção dos que, por vezes ingenuamente, o aceitam de alguma forma.

5. Respostas reducionistas, simplórias e pervertidas

Agora que definimos um modelo alternativo e bíblico para considerar crenças, podemos fazer uma comparação crítica à trilha de aconselhamento que Andrea propõe. Voltemos ao diagnóstico que Andrea faz do rapaz que aconselha para identificar os três pontos: o que é ensinando, quem é exposto ao ensino e quem propaga o ensino. Andrea nos disse que a crença do rapaz era de que “(n)o dia em que o pai conseguir preencher seu “vazio”, suas emoções e seus desejos serão supridos, assim ele deixará de cobiçar outros homens”, o que ela identifica como uma crença equivocada, mas mais do que equivocada, a crença do rapaz não estaria levando em conta a redenção de Cristo em sua vida. O problema, para Andrea, é que o rapaz não tinha Cristo como o centro de sua vida.

Assim como Andrea, não acredito que uma crença de que o amor de um pai livra alguém da homossexualidade, também concordamos que o rapaz precisa ser convencido de sua compreensão limitada. Temos então dois pontos dos descritos anteriormente, a crença em si e aquele que acredita nela, ambos sendo colocados à prova. Mas falta algo aqui, Andrea desconsidera quem ou o que está ensinando isso ao rapaz.

Andrea, diante da falsa crença, rapidamente passa a julgar que o rapaz pensa assim pois transformou o pai em seu salvador, quando na verdade só Cristo tem esse lugar em sua vida. A crença do rapaz não é cristocêntrica e Jesus não faz parte de seu mundo. Mas essa é a melhor maneira de realmente enxergar e conduzir a situação? Se ele acredita em algo do tipo, podemos nos perguntar, por quê? E dizer que porque ele não leva Jesus em conta é uma resposta precipitada e até imprudente. A resposta pode ser mais simples do que parece. Por que o rapaz pensa assim? Simples, porque algo ou alguém o convenceu disso. Uma crença dessa natureza dificilmente nasce espontaneamente em alguém, a pessoa foi levada a crer nisso por alguém com alguma influência o bastante para o fazer acreditar. Leu isso em um livro? Ouviu de algum terapeuta? Há algumas possibilidades.

O que se pode dizer é que essa crença, influenciada por um pseudofreudismo há décadas, é utilizada por terapeutas cristãos e pastores em tentativas de dissuadir os outros de que a homossexualidade não é natural e sim um déficit desenvolvido pela falta de referências paternas ou maternas. Durante décadas esse tipo de compreensão estava em manuais lidos por pastores e pais em nossas igrejas e, por consequência, ensinado como verdade e método de trato com pessoas homossexuais.

Teorias como essas há muito entraram em descrédito, mas ainda assim ocupam algum lugar em certos imaginários e setores conservadores da igreja, então não é de se surpreender que muitos ainda sejam influenciados em alguma medida por elas. Não apenas o rapaz em questão está suscetível a crer em algo assim, mas inúmeros outros foram e estão sendo expostos a isso em púlpitos de igrejas, palestras, acampamentos, livros, manuais de sexualidade para cristãos e em salas de aconselhamento pastoral. Muitos acreditam nisso pois o recebem daqueles que julgam ser pessoas de confiança e autoridade, são seus líderes, pastores e conselheiros. Quando Andrea não leva isso em conta, ela exime os propagadores e disseminadores desse falso ensino, enquanto pesa a mão sobre aqueles que ingenuamente acreditaram nisso, achando ser a explicação mais razoável vinda de um superior. Hoje crítica de ideais como esses, Andrea, em outros tempos, foi uma promotora de crenças como essas:

Andréa Vargas — Sexualidade, Homossexualidade, negligência e abuso infatil

Desde então Andrea parece ter refeito seu caminho, mas isso não faz com que muitos tenham ouvido essas crenças através de suas palestras. Na verdade, não muda o fato de que organizações onde Andrea atuou como o Exodus Brasil e similares foram propagadoras de crenças desse tipo para que atualmente pessoas como aquele rapaz acreditassem nelas como razoáveis. Hoje parece muito fácil alegar que pessoas que acreditam nisso o fazem pois Jesus não está no centro de suas vidas.

Um aconselhamento baseado unicamente em especular as crenças dos aconselhados é essencialmente reducionista em encontrar as razões de um problema. Ele foca unicamente nas crenças do indivíduo, sem levar em conta que as crenças das pessoas não estão separadas de crenças maiores e estruturais que o influenciam. Por vezes, as crenças de uma pessoa são a ponta do iceberg de um sistema de crenças compartilhadas. Muitos evangélicos reformados tendem a rejeitar a ideia de estrutura quando trata-se de danos, injustiças ou pecados, para esses, o que existem são apenas indivíduos e suas crenças pessoais. Bavinck, importante teólogo reformado, nos apresenta uma ideia colaborativa de pecado:

“Os seres humanos não são indivíduos em um sentido absoluto. Um ser humano nasce da matriz de uma comunidade e desde aquele primeiro momento vive em um certo círculo, situação e período. A família imediata e maior, a sociedade, a nação, o clima, o estilo de vida, a cultura, o espírito de uma era e assim por diante — todos eles juntos impactam a pessoa individual e modificam sua depravação moral inata. O pecado, portanto, embora seja de fato sempre essencialmente o mesmo, se manifesta de diferentes maneiras e formas em diferentes pessoas, famílias, classes e nações e em diferentes estados e tempos (…) Existem pecados familiares, pecados sociais, pecados nacionais (…) Além do que chamamos de “pecado original”, há também “culpa corporativa e ação corporativa do pecado”. Assim como as pessoas estão interconectadas, também o são suas inclinações e ações pecaminosas. (Reformed Dogmatics, V.3, p. 175)”

Uma compreensão estrutural das coisas nos faz perceber que as ideias nem sempre são de indivíduos, elas são compartilhadas, ensinadas e recebidas por aqueles que têm poder e influência para isso. Dessa maneira, especular sobre as crenças de alguém pode não ser a abordagem mais adequada em certos momentos, seja porque nem sempre estamos diante da origem de um conteúdo, mas principalmente quando estamos lidando com pessoas imaturas ou não adequadamente informadas, não porque devemos subestimá-las, mas precisamente porque as falta, em muitos momentos discernimento, juízo, experiência ou informação qualificada.

Não sabemos muito sobre o rapaz que Andrea acompanha e, por isso, não é possível fazer muitas considerações. Sabemos que em sua vida há questões com os pais, abuso, dores e faltas, e por fim sabemos que o único suposto problema percebido nesse jovem foi não ter a melhor e mais madura percepção sobre Jesus na sua vida. E um jovem cheio de dilemas foi considerado culpado por não ser espiritualmente maduro o suficiente, quando muitos nessas circunstâncias são, para usar as palavras de Paulo, aqueles que ainda estão sendo gerados até que Cristo seja neles formado totalmente. Sua imaturidade, comum a muitos de nós, não foi considerada aqui, assim como outras razões para suas más referências.

Sheila Wray Gregoire, autora de Em defesa do sexo incrível , apontou quatro preocupações com o aconselhamento bíblico. Entre eles estavam a suscetibilidade do conselheiro bíblico a não determinar exatamente o problema de um aconselhado e também não terem um treinamento qualificado para lidar com os limites de sua abordagem. Sheila define ao menos três situações onde o aconselhamento bíblico encontra limitações em suas abordagens: episódios traumáticos, doenças mentais ou relacionamentos disfuncionais e abusivos.

De que outras formas Andrea está equivocada? De maneira geral, Andrea diz que somos pecadores e precisamos ser salvos por Jesus, o que há de errado nisso? Creio que o maior problema de Andrea é seu reducionismo e sua resolução simplória no tratamento genérico que dá a algumas coisas. Consideremos falas como “a resposta é em Jesus”, “você é aquilo que Deus diz de você”, “somos redimidos se estamos em Cristo”. O que há de tão errado em dizer coisas assim?

Realmente, se somos cristãos e evangélicos, dizer que “Jesus é a resposta” não parece ser algo questionávelo, afinal, é a simplicidade da féPorém, dizer que tudo é sobre Jesus ou que tudo se resolve em Jesus pode esconder um sutil engano. Veja, quando Paulo escreve à igreja em Corinto, ele começa sua carta falando daquele que é um dos problemas daquela comunidade: partidos e divisões. Paulo diz que havia alguns que se consideravam como sendo dos de Paulo, outros de Apolo, alguns eram Cefas e por último, mas não menos importante, havia um grupo que dizia que era “de Cristo”. Paulo repreende a postura facciosa, ou seja, podemos supor que o problema era não fazer parte do grupo verdadeiro, o grupo dos de Cristo, no entanto, ao ser incluído como um grupo divisivo, o grupo “de Cristo” poderia ser, no fim das contas, o mais problemático. Ao afirmarem que eram apenas de Cristo, esse grupo facilmente estaria recusando qualquer autoridade e ensino apotóslico, em especial aqueles vindos do próprio Paulo. Afinal, o que Cristo disse importava, o que Paulo e outros diziam, não.

Facilmente encontramos pessoas que dizem que não são calvinistas ou arminianas pois são “de Cristo”, alegando que não foi Calvino ou Armínio que morreu por elas. Alguns que se dizem cristãos mas sem vinculação a alguma igreja específica, ao serem perguntados, podem dizer que não precisam de um compromisso rígido com uma congregação, pois possuem o que realmente importa ao cristão: Jesus no coração. Há quem defenda Jesus como única chave hermenêutica para entendermos as escrituras e também há quem minimize o papel do antigo testamento ou dos demais livros do novo testamento em relação ao lugar elevado dos evangelhos. Por que pode parecer difícil contestar esses discursos? Porque de fato dizer que apenas Jesus importa é uma confissão convincente num primeiro momento, quem pode dizer que ela é em si mesma falsa? Então temos que ser cautelosos para apontar o problema, a falsa oposição. Dizer que precisamos apenas de Jesus ou que ele é a resposta se torna questionável quando ele está sendo usado para promover um dilema que não existe, como se Jesus precisasse ser escolhido sempre diante de outra coisa. Jesus ou teologia? Jesus ou igreja? Jesus ou nossas emoções? Na maior parte do tempo, a vida cristã não é uma dicotomia como essa. Quando Andrea diz que “Jesus deve ser o centro”, o que isso quer dizer? Há um falso dilema com uma frase que diz muito, mas se formos pensar bem, não diz muita coisa também, se torna apenas bravata, retórica de apelo e frase de efeito.

Mas não são apenas respostas simplórias que me parecem recorrentes em seu ensino, infelizmente é uma tendência em seus discursos uma espécie de perversão das coisas, o que compromete ainda mais sua teologia. Notadamente, Andrea tem uma preferência em fazer com que suas falas acabem girando em torno de episódios de assédio e abuso. Veja, tratar dessas questões não é algo ruim, muito pelo contrário, mas de fato é desgastante perceber que Andrea alega ser uma teóloga da sexualidade, mas quase sempre se presta a falar sobre sexualidade nivelando por baixo, sempre a partir do que há de pior e desconfortável. Andrea reduz sua teologia aos problemas da/na sexualidade e nunca sobre os presentes da/na sexualidade.

A impressão que tenho é que a trajetória de Andrea a colocou na linha de frente dos piores quadros e problemas que se pode encontrar quando se lida com a realidade humana. Andrea tem um histórico com episódios difíceis que normalmente não estão no radar da igreja, o que pode ter feito com que Andrea tornasse seu método pastoral viciado, incapaz de considerar diversas nuances quando estamos falando de sexualidade fora desses tons obscuros, consideravelmente aqueles que estão dentro de nossas igrejas. Andrea então trata tudo e todos os arremessando na mesma vala comum, o filho do pastor que se assumiu pra mãe e alguém que se prostitui acabam por serem vistos essencialmente como tendo os mesmos problemas e necessitando das mesmas respostas, a saber: eles só precisam de Jesus.

Andrea tem passagens bíblicas prediletas muito recorrentes em suas ministrações: a de José tendo que fugir do assédio da mulher de seu senhor e o episódio envolvendo o abuso de Tamar, filha de Davi, por seu meio-irmão Amnom. De fato, é curioso que muito do que Andrea pode dizer sobre sexualidade parece ser encontrado aqui. Ao medir tudo através dessa régua, Andrea consegue convencer sua audiência que o problema das pessoas é essencialmente a idolatria, afinal, seus exemplos sempre envolvem vícios, abusos e dependência doentia. Não é por acaso que os episódios descritos em muitas de suas palestras e em seu livro envolvam sempre alguém que lida com o consumo de pornografia ou masturbação compulsiva. Em seus exemplos, Andrea nunca reflete a partir de outras situações igualmente importantes, como adolescentes que lidam com homofobia na família e na igreja, ou ainda pessoas LGBTQIA+ deixando suas comunidades de fé, pois seus líderes e membros não conseguiram oferecer hospitalidade e compreensão. Mas então temos que lembrar que nesses episódios a responsabilidade não está recaindo sobre as pessoas LGBTQIA+, mas sobre líderes, familiares e pastores que definitivamente não sabem prover meios pastorais e teológicos para lidar com essas circunstâncias. A teologia de Andrea exime esses outros agentes quando sempre culpabiliza e responsabiliza os membros LGBTQIA+ de igrejas. Esse discurso permite com que Andrea transite facilmente em igrejas, ele é atrativo para aqueles que não querem ser postos à prova, eles conseguem desencargos de consciência ao ouvirem que os problemas de pessoas LGBTQIA+ são essencialmente os ídolos de seus corações. O problema não é da liderança, dos pais ou amigos.

Exemplos da tendência pervertida dos discursos de Andrea estão por toda parte, alguns mais flagrantes podem ser vistos em suas participações em podcasts. Em uma delas, Andrea é perguntada se acredita que homossexuais são assim pois nasceram dessa maneira — uma pergunta com premissas bem claras sobre o quão intrínseca é a homossexualidade. Andrea responde alegando que crianças não podem ter sexualidade e cita o caso de uma menina abusada, que aos nove anos já sofria com abstinência sexual (?!). O episódio retratado é horrendo, mas completamente alheio à natureza da pergunta feita:

A Pessoa Nasce ou Não Nasce Gay? — Andréa Vargas

Em outra participação, conseguimos ver mais uma vez o modelo limitado de tratativa de questões relacionadas às pessoas LGBTQIA+. Andrea está elucubrando, mais uma vez, sobre como não somos o que sentimos, que desejos e afetos estão na periferia da existência e que, na verdade, nossos problemas afetivos são sobre ídolos e quem de fato estamos adorando. Andrea tenta provar isso contando um caso que caiu em suas mãos, nele, uma mãe espera que Andrea a ajude com sua filha, que cresceu na igreja, e que está apaixonada pela amiga. Ao conversar com a garota, Andrea pergunta sobre sua experiência de nascer de novo, mas a garota não tem uma história para contar. Andrea entende que se trata, então, de uma pessoa morta espiritualmente, que nunca nasceu de novo e que não há porque esperar mudanças de comportamento, já que supostamente o seu problema é sua falta de conversão em seu coração:

Família Farol Podcast — Andrea Vargas

É nesse momento que o host do podcast começa, de forma perspicaz e assertiva, a levantar questões que consideram nuances e variáveis que normalmente Andrea não leva em conta, exatamente aquelas que limitam seus diagnósticos reducionistas. O host então questiona: “Suponhamos que essa garota nasceu de novo, e ai?!”, Andrea responde que o amor por Jesus deve ser maior do que todos. O host pergunta novamente: “E se ela disser que ama Jesus profundamente?”. Andrea responde que alguém que diga algo assim está mentindo, pois não há nenhuma tentação sem escape, concluindo que “assim como o homem vive sem a pornografia e o adultério, a mulher vive sem o conto erótico, todos nós conseguimos viver sem os nosso ídolos se Cristo for o nosso bom pastor, a questão é que a gente não confia”.

O host continua sendo incisivo e pergunta se a resposta então é reprimir desejos — aqui ele realmente leva Andrea a aspectos profundos que normalmente não aparecem em seu discurso, coisas que mostram como as questões são mais difíceis do que parecem. Andrea responde a essa questão saindo da seara da homoafetividade e arrastando a conversa para comparações obscuras:

“As pessoas têm o direito de viver a sexualidade delas do jeito que quiserem, aí vão ter que arcar com as consequências, porque vai ter gente que vai ter desejo por criança, e aí? (…) Eu conheço homem que tem fetiche em causar dor em mulher, e aí, ele vai ter que reprimir ou aí não pode?”

Quando Andrea precisa responder questões delicadas e exigentes, ela tende a se esquivar em direção a temas escrupulosos para, de alguma forma, moralizar a questão em lugares sensíveis, de modo que seu interlocutor possa concordar que esses lugares são igualmente reprováveis àquela questão inicialmente discutida. Andrea, no entanto, faz isso colocando pessoas LGBTQIA+ no mesmo lugar que pedófilos.

Mesmo conselheiros bíblicos que não precisam recorrer a comparações esdrúxulas como essas ainda se juntam à Andrea em quase sempre refletir sobre sexualidade no eixo PECADO-GRAÇA e nunca no eixo NATUREZA-GRAÇA. No primeiro eixo se enfatiza o estado de pecado e a necessidade de arrependimento e conversão como maneira de lidar com os dilemas existenciais. No segundo eixo se reconhece que mesmo a Graça Divina ainda coexiste nos limites próprios da condição humana criada. Podemos dizer que um sistema completo entende a sexualidade no eixo:

NATUREZA-GRAÇA-PECADO

Quando Paulo foi perguntado sobre se era melhor se casar ou não, ele precisou responder com um certo jogo de cintura. Paulo poderia simplesmente dizer que Jesus era suficiente ou ainda questionar a conversão daqueles tão preocupados em algo “periférico”, como desejos e emoções, assim como fazem certos conselheiros bíblicos. A resposta de Paulo, no entanto, trafegou por alguns aspectos do problema: ele entende que o casamento é um meio significativo e natural para aqueles vulneráveis à imoralidade e as investidas do diabo. Por isso, Paulo prefere tratar a questão em termos de ter a vocação para se casar ou permanecer solteiro, deixando a cargo dos crentes discernir sobre os dons que Deus os deu. Em muitas ocasiões, Andrea e outros conselheiros nos perguntam qual é o nosso ídolo sexual quando a pergunta poderia e deveria ser sobre quais são nossos dons.

Uma teologia natural entende que somos seres relacionais, criados para algumas formas de relacionamentos constitutivos de nossa vida como seres humanos. Na maior parte do tempo não estamos vivendo em oposição a essas relações, mas as reconhecendo como parte da constatação de que “não é bom que o homem esteja só”. Somos atravessados por nossos afetos e a vida cristã não é a superação do desejo ou afeto, o que seria uma desqualificação do próprio corpo, mas uma ordenação do desejo e do afeto. Uma teologia natural dos afetos e relações reconhece que precisamos de abraços e que essas demonstrações de afeto nos tocam profundamente. Posso dizer que o que falta à Andrea e a muitos conselheiros é realmente uma teologia do abraço, pois mesmo que Andrea alegue não desmerecer as emoções, sua teologia, ainda assim, só se articula em dicotomias ontológicas, ou seja, como as emoções nos descrevem está em oposição a como Deus nos descreve, quando na verdade isso é um falso dilema. Como alguns estudiosos teológicos das afeições demonstram, as escrituras estão repletas de linguagem afetiva como agentes e motores:

De fato, a linguagem emocional ocorre frequentemente nos escritos do Novo Testamento, algumas partes das quais mencionam sentimentos concretos ou descrevem dinâmicas emocionais que impactam as interações humanas. Exceto pelo prazer (ἠδονή), que aparece em apenas quatro lugares, as outras emoções básicas do sistema estoico podem ser encontradas mais ou menos frequentemente no Novo Testamento. Dor (λύπη), medo (φόβος) e desejo (ἐπιθυμία) , assim como alegria (χαρά), estão tão presentes nesses textos quanto outras palavras-chave importantes da reflexão antropológica, como corpo (σῶμα), consciência (συνείδησις), coração (καρδία) ou carne (σάρξ). (NEUMANN, 2024)

É notável como vários temas bíblicos simplesmente não aparecem no repertório teológico de Andrea, nunca a vi falando profundamente sobre discernimento, vocação, celibato, solteirice, amizade, família eletiva e diversos outros aspectos que se referem a sexualidade, prática pastoral e meios práticos para lidar com inúmeras questões dessa natureza. Andrea diz ter uma teologia bíblica, mas as coisas bíblicas para Andrea são uma porção de frases de efeito sobre ter uma cosmovisão bíblica e dizer coisas dentro do sistema Criação/Queda/Redenção. Certamente ser bíblico e tratar temas em sexualidade de forma bíblica inclui muito mais do que chavões, bravatas e frases de efeito comumente ouvidas por calvinistas de primeira viagem, mas, infelizmente, ser um mero reprodutor dessas coisas parece garantir a presença em certos lugares e aceitação como opinião qualificada.

Muitos conselheiros bíblicos, e à sua maneira, a própria Andrea, operam no sentido oposto ao que encontramos no controverso caso da comida sacrificada aos ídolos na carta aos Coríntios. Para Paulo, “um ídolo não é coisa nenhuma”, em outras palavras, o ídolo não existe em si mesmo e todo crente verdadeiro sabe que “há um só Deus, o Pai, a quem pertencem todas as coisas (…) Também há um só Senhor, Jesus Cristo, que criou igualmente todas as coisas e nos dá a vida”. Paulo quer livrar as pessoas do falso dilema da idolatria, já que, para ele Deus é o autor de todas as coisas, inclusive da comida. O apóstolo se preocupa, portanto, com a consciência daqueles que, por imaturidade ou fraqueza de fé (Romanos 14), não conseguem discernir e, por isso, ficam sujeitos às armadilhas da consciência ao acharem que estão comendo intencionalmente algo oferecido ao ídolo, em contrapartida aos mais sábios e maduros, que conseguem discernir o falso dilema da idolatria e podem viver de forma sóbria sua liberdade em Cristo. Ao contrário de Paulo, muitos atuam justamente alimentando o imaginário de seus ouvintes, como se eles participassem de fato do banquete de um ídolo, arrastando essas pessoas para dilemas que, em muitas circunstâncias, não são exatamente como se apresentam. Mesmo que concordemos que estamos sujeitos aos ídolos do coração, podemos nos perguntar se sempre um dilema é necessariamente por causa de um ídolo. Um crente verdadeiro viverá tranquilo se de fato estiver cultuando outro deus? Deus não nos frustra expondo e derrubando nossos ídolos? Estamos de fato a todo momento sujeitos à idolatria dessa forma? Essas e outras tantas questões desaparecem na teologia de Andrea sobre idolatria, e o que sobra são frases imperativas, acusatórias e insensíveis, como as de quem acredita que consegue invadir consciências e sondar corações. Paulo, no entanto, nos fala sobre os que querem julgar a suposta falta de fé ou idolatria dos outros: : “Se alguém pensa que tem a resposta para todas as questões não está mais do que a revelar a sua ignorância. A pessoa que ama a Deus é aquela que Deus conhece.”

6. Considerações Finais

Uma das mais recentes ministrações de Andrea disponíveis no YouTube que pude assistir foi sua participação no Regenere, ministério de jovens da Igreja Pentecostal Deus é Amor, e para além da própria natureza de um evento na IPDA mais aberto e receptivo àqueles de fora da denominação tradicionalmente reclusa, algumas coisas me chamaram a atenção. Andrea, como de praxe, escolheu o caso do assédio de José como texto de orientação à sua ministração, no entanto, boa parte de sua fala não foi marcada por muito dos cacoetes de linguagem reformada típica de seus discursos. Fora dos círculos presbiterianos, Andrea parece se sentir menos comprometida com certas cartilhas e responde melhor a certas questões, como quando foi perguntada sobre a responsabilidade de vítimas de abuso. É importante destacar algo assim para demonstrar que não estou problematizando tudo e qualquer coisa que Andrea faça ou diga:

Sessão 1 | Conf. RGNR — Andréa Vargas & Karina Mendes | Ao vivo

Alguns podem achar que meu problema é pessoal, ou ainda acreditam que Andrea é a fonte de todos os problemas no debate sobre sexualidade no Brasil, mas creio que as coisas não são bem assim, visto que temos um contexto realmente desafiador quando falamos de sexualidade nos círculos teológicos brasileiros. Primeiro, há uma realidade essencialmente reacionária que só se volta à questão em termos puramente moralistas e reativos, há também que se levar em conta que há poucos quadros de teólogos qualificados e com projeção falando sobre sexualidade, é por isso que o que vemos são pessoas que reivindicam ter a capacidade de responder a qualquer coisa- não temos especialistas ou uma comunidade pensando de forma colaborativa as complexidades do tema, temos tudólogos, pessoas que respondem de tudo, e só respondem a tudo pois oferecem uma resposta genérica e reducionista para qualquer coisa.

É em contextos tão deficientes de referências que muitas vozes surgem quase como uma luz no fim do túnel para muitas pessoas, e ter um certo monopólio em certas discussões é o que os fazem serem altamente referenciados sem que ninguém faça reparos à sua teologia ou reconheça-nos como limitados. Creio que se houvesse mais pessoas qualificadas e produtivas atuando, seria mais fácil perceber as inconsistências nas teologias e discursos, o que inclui Andrea Vargas. Ser quase que a única referência torna o debate extremamente personalista e, por isso, sempre vejo admiradores desses ministérios realmente indispostos com críticas, muitos já não se atêm à teologia em si, mas se apegam à pessoa que produz, algo realmente inusitado vindo daqueles que sempre resumem seu discurso a denunciar a idolatria dos corações das pessoas.

Alguns podem pensar que Andrea é questionável porque ela não assume uma teologia afirmativa, é claro que, para muitos, esse é de fato o cerne dos problemas de Andrea, mas creio que não seja o caso. Há vários teólogos emergentes e vocais nos últimos tempos que têm sido extremamente enriquecedores em sua teologia sobre sexualidade, e eles não partem de uma teologia propriamente afirmativa, poderia citar nomes como David Bennett, Greg Coles, Nate Collins, Wesley Hill, Preston Sprinkle, Eve Tushnet ou o brasileiro Fellipe do Vale. A teologia de Andrea não é questionável porque não é afirmativa, ela é questionável porque é irrefletida. Andrea parece sempre trabalhar com o que está disponível, foi assim que em seus primeiros anos de ministério às voltas com o que organizações como o Exodus Brasil veiculavam sobre sexualidade, algo que foi substituído depois por uma postura mais pop e promissora para quem a assume, a teologia reformada. O calvinismo, há algum tempo, se tornou uma teologia de interesses e potenciais, e muitos o assumem de maneira automática, utilizando-o como uma ferramenta sem muito trato, e, por isso, vejo que muito do discurso de Andrea é um acúmulo de referências sem muito cuidado ou reflexão. Andrea está rezando uma cartilha, algo que inclusive preserva o ministério de mulheres em ambientes onde o papel feminino tem sido cada vez mais limitado e restringido, como é o caso da Igreja Presbiteriana do Brasil, denominação a qual Andrea pertence há algum tempo.

Não tenho dúvidas de que os ministérios de Andrea podem ser assertivos em muitas outras abordagens e para vários públicos, a escola de missões urbanas, que Andrea dirige em Vitória/ES, tem um amplo quadro de demandas e certamente é importante para muitas pessoas. No entanto, o trato de Andrea em sexualidade, particularmente o que envolve pessoas LGBTQIA+, é ainda muito questionável para mim. Suas respostas simplórias, reducionistas e pervertidas me fazem recusar muito de sua contribuição ao debate, sobretudo porque consigo acessar o debate em outros contextos como nos EUA. Essas respostas não são satisfatórias pois, além de uma improvisação teológica, elas não desfazem falsos dilemas, elas os fortalecem, como quando opõe relações verticais (das pessoas com Deus) e horizontais (das pessoas com os outros e consigo mesmas) e, ao invés de resolver problemas, arrasta pessoas para labirintos existenciais.

Ainda quero pensar que Andrea e outros podem refazer o caminho, aparar as arestas e rever muito de seu alinhamento teológico, pois sei que hoje Andrea tem suas respostas pastorais e teológicas muito mais assessorada por pastores reformados do que pelo contato vivo com as demandas verdadeiras de pessoas LGBTQIA+ . Gostaria de ver Andrea aumentando seu repertório teológico e adicionando reflexões mais profundas ao seu ministério, além de vê-la realmente reconhecendo o testemunho vivo de pessoas LGBTQIA+ em nossas igrejas que persistem em suas comunidades mesmo em condições nem sempre favoráveis. Andrea não conta essas histórias.

Aos poucos, creio que as pessoas se tornarão mais conscientes e maduras, capazes de identificar discursos limitados e problemáticos como os de Andrea, que mais confundem do que realmente ajudam. Muitos realmente encontrarão razoabilidade em teologias afirmativas e outros talvez não se convençam e procurem uma alternativa que preserve uma compreensão tradicional da sexualidade com sobriedade e profundidade. Definitivamente não encontrarão isso em muitos desses discursos correntes que não acertam certos alvos pois nem os estão mirando adequadamente.

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