O dedo de David Hume, o patrulhamento político e o Macarthismo na IPB.

Se você eventualmente estiver de passagem por Edimburgo na Escócia e por ventura também estiver próximo do prédio do Supremo Tribunal no centro histórico da capital escocesa poderá encontrar com um marco iconográfico bastante conhecido do lugar: a estátua de David Hume. Hume foi um importante filósofo iluminista escocês que viveu ao longo da primeira metade do século XVIII sendo amplamente conhecido por sua compreensão cética e empirista da realidade, o que o tornou um filósofo ferrenhamente combatente de visões de mundo repletas de crendices e mitologias em geral, o que o fez também ser um filósofo que se dispôs a espanar Deus da mente humana deixando a cargo unicamente da razão o feito de dirigir o ser humano em sua existência. David Hume morreu como um ateu convicto, mas apesar disso contribui de forma grandiosa para o que veio a se tornar o pensamento conservador-liberal britânico exportado para todo o Ocidente, de modo que sua influência vai desde a filosofia natural até as matrizes de democracias e economias liberais. Junto com seu conterrâneo Adam Smith e seu vizinho inglês John Locke compõe o panteão de pensadores fundamentais do pensamento político moderno.
A estátua de Hume fixada desde 1997 no centro da Edimburgo é bastante vista pelos que transitam por alí, e há uma tradição de que o tocar no dedo maior do pé da estátua trás sorte, e isso é tão corriqueiro que o dedo da estátua tem a aparência lustrada de cobre. Perto dali em frente à Catedral de St. Giles, a igreja matriz do presbiterianismo escocês, está uma estátua do também pensador escocês Adam Smith, esse sendo um dos principais pensadores que formularam as ideais que serviram de base para o estabelecimento do liberalismo econômico e do capitalismo como o conhecemos. Enquanto ambas as estátuas dos pensadores iluministas estão em evidência no centro de Edimburgo é significativo lembrar que o túmulo de John Knox, patrono do presbiterianismo reside em uma vaga de estacionamento sem grandes memoriais.

As ideias, as filosofias, as correntes políticas e econômicas nos cercam enquanto cristãos e inevitavelmente estaremos em acordo com elas ou as contrariando por esse e por aquele motivo. Mas o que torna um corpo de ideias passível de ser afirmado, acreditado ou contrariamente colocado a prova pelos cristãos? Quem tem prerrogativa para definir os termos e os critérios para o pertencimento político dos cristãos? Bem, pode se refletir muito sobre isso, mas ao menos na Igreja Presbiteriana do Brasil há quem já tenha feito escolhas e queira legislar sobre a pertença política e ideológica de seus membros e oficiais.
Ao menos até agora existem dois documentos enviados ao Supremo Concílio que tratam de questões concernentes a legitimidade de pertencimento político. Ambos os documentos procuram restringir a filiação, pertença ou identificação de membros e oficiais da IPB com partidos e ideais tidos como sendo DE ESUQERDA, o que por consequência deixariam eximidos qualquer um que se identificasse como sendo DE DIREITA. Vejamos do que se trata.
O Documento 68 proveniente do Sínodo do Vale do Aço trata de uma “CONSULTA SOBRE MEMBOS E OFICIAS DA IPB ADEPTOS A PARTIDOS DE ESQUERDA”. A integra do documento ainda não está acessível mais o título já intua algumas questões.
É evidente a parcialidade estrita e o comprometimento político de uma petição como essas além de ser inconstitucional, pois inibe o direito dos cidadãos de filiação e pertença política e partidária, uma proposta como essa da margem para uma série de implicações como: A pertença política de um oficial ou membro será inspecionada e patrulhada? A depender da filiação partidária alguém será sancionado ou punido? Terá restrições de funções na igreja? Há ainda que se questionar quais critérios serão usados, já que “direita” e “esquerda” são termos abrangentes, genéricos e dizem respeito a várias coisas. Estar à esquerda ou a direita de algo é uma questão relativa e cheia de variáveis, pode significar ser favorável ou não a certas políticas públicas, aos direitos mais fixos de trabalhadores, encargos do Estado, ou limites da liberdade, etc.
Os presbiterianos durante o seu momento de chegada ao Brasil podem ser facilmente incluídos A ESQUERDA do espectro político em um contexto de catolicismo majoritário e um Estado Laico não materializado. Os protestantes eram um grupo minoritário que facilmente estariam precisando da boa vontade de um Tribunal Superior já que não tinham representação legislativa. Esse é um bom exemplo de como estar à esquerda ou à direita podem ser coisas relativas.
Uma decisão de 2006 da Comissão Executiva da IPB concedeu um parecer sobre o pertencimento político de membros e oficiais da igreja:
“CE — 2006 — DOC. LII: Quanto ao documento 187 — Ementa: Oriundo do Sínodo Alagoas-Sergipe, consulta sobre oficiais em Partido Comunista. A CE-SC-IPB 2006 RESOLVE: 1. Tomar conhecimento. Considerando: 2. O Direito Constitucional Brasileiro de liberdade de consciência e de livre filiação; 3. Que não há proibição legal de membro da Igreja filiar-se a qualquer partido político; 4. Sobretudo, que a liberdade de consciência é um conceito basilar da Reforma Protestante; RESOLVE: 1. Responder ao Sínodo Alagoas-Sergipe que todo membro da IPB é livre para filiar-se ao partido político que julgar conveniente, desde que não fira os princípios Bíblicos.”
A Resolução sabiamente assegura as garantias constitucionais e deixa a cargo de cada pessoa mediante sua própria consciência e julgamento decidir se é cabível pertencer a esse ou aquele partido. O que nos leva ao segundo documento que trata da questão.
Vem do Sínodo do Rio Grande do Norte uma “PROPOSTA DE REVOGAÇÃO DA DECISÃO CE-SC/2006”. A proposta basicamente procura invalidar a resolução de 2006 que para todos os efeitos e ao menos em tese assegura que os membros e oficiais da IPB tenham liberdade de consciência para com suas convicções políticas. O texto integral da proposta de revogação está disponível e pode ser facilmente acessado pela plataforma iCalvinus.
A proposta de revogação, ou DOCUMENTO 117, tentar recuperar pronunciamentos anteriores da IPB que tratam da questão com maior restrição, além de alegar a incompatibilidade da fé cristã com o comunismo, sendo esse “uma filosofia de vida contrária ao espírito e a doutrina evangélica”.
Poderíamos de forma bem legitima refletir sobre essas incompatibilidades, mas a questão não é tanto essa. O que está em jogo são propostas de parcialidade política que mais uma vez guardam implicações extremamente questionáveis, a começar pelo fato de que ao estabelecer julgamentos quanto ao que se convenciona chamar meio genericamente de COMUNISMO ou ESQUERDA automaticamente se estabelece uma aura de infalibilidade e neutralidade com o que venha a ser chamado de DIREITA, com isso o “ser de direita”, o “ser conservador” ou o “ser nacionalista” viram automaticamente sinônimo de ortodoxia cristã, pertencimentos políticos sobre a qual não resvala nenhuma suspeita ou prova. Poucas coisas podem ser tão perniciosas do que acreditar que essa ou aquela visão política é o que garantem a idoneidade das pessoas ou ainda dos cristãos.
Por isso se uma denominação começa a especular sobre a pertença política de seus membros e oficiais de esquerda por qual razão ela também não estaria fazendo o mesmo com outras visões ideológicas? Há muito “materialismo ateu” na raiz e no desenvolvimento do liberalismo político de Hume, na Escola de Chicago de onde saem economistas hipercapitalistas, nos livros da autora russa anticomunista Ayn Rand (Ayn Rand é extremamente influente dentro do pensamento capitalista atual, Ayn tinha uma visão otimista do egoísmo individualista e não se sabe o que odiava mais, se o cristianismo ou o comunismo, talvez pelo fato de os considerar quase a mesma coisa). E o que dizer sobre presbiterianos anarcocapitalistas? E eventuais monarquistas? Haveria que se questionar também a pertença ou o alinhamento de membros da IPB aos partidos de extrema direita com seus discursos de apologia à torturadora ou a ditaduras militares. Ou talvez quem sabe também se poderia inspecionar membros que são simpatizantes de teólogos ou grupos católicos antiprotestantes que vivem de difamar a fé reformada. A igreja inspecionará tudo isso?
O que se vê é um tipo de Macarthismo na igreja, período em que nos Estados Unidos havia um clima de caça as bruxas, ou melhor, aos comunistas, e pior, com uma mentalidade paranoica e conspiracionista a tudo que fosse julgado como sendo comunista mesmo não o sendo de fato.
O que se espera é que essas propostas sejam consideradas inconstitucionais e passiveis de reprovação como também se espera que se reafirme a liberdade de pertencimento político e ideológico. De qualquer maneira permanece o alerta para o tipo de aceno que elas procuram fazer.
Não sejamos ingênuos em acreditar que visões políticas não criarão conflitos e controvérsias, e lideranças religiosas honestas saberão assegurar liberdades e tratar dessas questões de modo a deixar que todos independente de colorações políticas saiam com pulgas atrás da orelha de seus sermões temáticos, ponderando sobre suas paixões ideológicas. Mas o que se vê aqui é a tentativa da supressão, da perseguição e da intimidação e vinda de um segmento bem específico que flerta com práticas de censura e retaliação.
Muitos dos proponentes ou simpatizantes dessas práticas de coerção se identificam como herdeiros do conservadorismo britânico, da qual Hume é um importante esponte, para esses que se dizem conservadores e assumem práticas de intimidação talvez valesse a pena se inteirar das ideais de liberdade individual e tolerância do autor escocês ateu, materialista e conservador, e talvez quem sabe organizarem um excursão para Edimburgo para tocarem no dedão do pé de sua estátua, além de dar sorte pode ajudar na compreensão das ideias do autor.