Cristão e gay — Respondendo David Riker e Pedro Dulci sobre identidade e linguagem
Identidade: Rastreando a natureza de um conceito.
Quem eu sou? O que me define? Qual é a minha identidade? Essas perguntas têm norteado algumas das discussões mais latentes que a teologia também reivindicou para si. É nessa esteira que os teólogos evangélicos, ao falarem de sexualidade e pessoas LGBTQIA+, em algum momento vão lidar com a questão em termos de definir uma compreensão da identidade. No Brasil, alguém com ministério vocal como David Riker estrutura boa parte de seu discurso teológico e pastoral ao falar sobre identidade como um elemento central a ser compreendido:
(…) eu gostaria de registrar que a batalha pela identidade é a mais profunda de todas. A forma que definimos a nós mesmos tem sido a grande discussão do universo contemporâneo. Nesse sentido, percebemos que a Queda nos impeliu a tomar nossos próprios sentimentos e afetos como base de nossa identidade, o que produz um engano tremendo pois carregamos a imagem de Deus. Assim, temos uma origem e um destino. Não somos simples resultado de nossos desejos ou de nossa cultura, pois há um autor por trás de tudo que somos: nosso Criador, nosso Redentor. É nesse contexto que o pecado sexual se aprofunda. Todos estão à procura de um senso de identidade e de pertencimento que lhes dê sentido na vida: querem fazer parte de um grupo e ser reconhecidos por seus pares. A ação da comunidade reforça o erro de tornar a atração sexual e as paixões humanas os substratos mais essenciais no nosso ser. De fato, enquanto você acreditar na mentira de que sua identidade não está em Deus, o pecado será um meio de experimentar falsas identidades. [1]
Mas o que está sendo entendido por identidade? O que as pessoas que aparentemente se identificam com a sua sexualidade estão querendo dizer com isso? Essas pessoas elegeram a sexualidade como o que há de mais essencial em suas vidas? Gerald Izenberg delimita as origens e a maneira como a identidade surgiu e se tornou presente nos debates atuais:
Na imaginação ocidental contemporânea, nada sobre o eu parece mais evidente do que a ideia de que temos, ou buscamos, uma identidade. As pessoas precisam se definir, acreditamos, saber e ser capazes de dizer aos outros “quem” ou “o que” são. A identidade permeou tanto o discurso acadêmico e popular que pode parecer que sempre foi um elemento fixo de ambos. Falamos prontamente na família, na mídia e no mercado de “identidade de gênero”, “crise de identidade”, “política de identidade”. Somente a disponibilidade de grandes bancos de dados eletrônicos permite que os estudiosos pesquisem o número incontrolável de livros e artigos nas ciências humanas e sociais com a palavra “identidade” em seus títulos, sem falar em seu conteúdo. Quando sugeri aos alunos em cursos sobre história da identidade que era uma ideia nova, eles invariavelmente respondiam com ceticismo: “As pessoas nem sempre tiveram identidades?”. Embora a resposta à pergunta deles seja sim, em certo sentido, sabemos por pesquisas recentes que o uso da palavra identidade com o significado que meus alunos consideravam garantido é historicamente novo. Como um problema na lógica da “semelhança”, a identidade remonta à filosofia antiga, sua mais conhecida formulação do enigma de Plutarco sobre o navio de Teseu: um navio cujas partes foram substituídas por uma nova é o mesmo navio? O que significa falar da identidade, ou semelhança, de duas coisas numericamente distintas era um tópico padrão na filosofia medieval e moderna. John Locke levantou pela primeira vez a questão da identidade pessoal — a continuidade ou semelhança do eu em relação ao fluxo em constante mudança de nossas impressões sensoriais — no século XVII. Mas a noção de identidade como autodefinição substantiva, autodefinição como algo, que supostamente determina o que eu acredito e faço, entrou em uso comum apenas com o trabalho de Erik Erikson na década de 1950. Foi então que ele cunhou o termo “identidade do ego” para descrever uma estrutura psíquica fundamental para o equilíbrio psicológico no adulto maduro, e a mais famosa “crise de identidade” para denotar os distúrbios que perturbam o eu enquanto ele está sendo estabelecido no adolescente. E embora a sociologia americana também tenha começado a usar a palavra na década de 1950 para se referir à definição de um indivíduo em termos de papéis sociais, foi apenas na década de 1960 que ativistas políticos, teóricos sociais e historiadores estenderam o conceito psicológico de Erikson a identidades de grupo mais amplas — gênero, orientação sexual, etnia e nação. Desde então, a expansão do termo não apenas abrangeu cada vez mais instâncias de identidade coletiva e multiplicou suas definições, mas gerou reivindicações para a existência do conceito, se não a presença da palavra, avant la lettre. Não surpreendentemente, também produziu uma forte reação: a identidade é um conceito válido? [2]
Trata-se de uma terminologia cheia de nuances e complexidades importada das ciências humanas e sociais sendo utilizada para vários propósitos e com diversas acepções. Para Brubaker e Cooper, que mapearam cinco definições possíveis do conceito, a identidade pode ser:
1. Entendida como fundação ou base da ação social ou política, a “identidade” é frequentemente oposta ao “interesse” em um esforço para destacar e conceituar modos não instrumentais de ação social e política. Com uma ênfase analítica ligeiramente diferente, é usado para descrever a maneira pela qual a ação — individual ou coletiva — pode ser governada por autocompreensões particularistas, em vez de por interesses próprios supostamente universais. Este é provavelmente o uso mais geral do termo; é frequentemente encontrado em combinação com outros usos. Envolve três contrastes relacionados, mas distintos, nas formas de conceituar e explicar a ação. A primeira é entre a compreensão e o interesse próprio (entendido de forma restrita). A segunda é entre a particularidade e a universalidade (putativa). A terceira é entre duas maneiras de interpretar a localização social. Muitas (embora não todas) vertentes da teorização identitária veem a ação social e política como poderosamente moldada pela posição no espaço social. Para a teorização identitária, significa posição em um espaço multidimensional definido por atributos categóricos particulares (raça, etnia, gênero, orientação sexual). Para a teorização instrumentalista, significa posição em uma estrutura social universalisticamente concebida (por exemplo, posição no mercado, na estrutura ocupacional ou no modo de produção).
2. Compreendida como um fenômeno especificamente coletivo, “identidade” denota uma semelhança fundamental e similar entre os membros de um grupo ou categoria. Isso pode ser entendido objetivamente (como uma semelhança “em si”) ou subjetivamente (como uma semelhança experimentada, sentida ou percebida). Espera-se que essa similaridade se manifeste em solidariedade, em disposições ou consciência compartilhadas, ou em ação coletiva. Esse uso é encontrado especialmente na literatura sobre movimentos sociais; sobre gênero; e sobre raça, etnia e nacionalismo. Nesse uso, a linha entre “identidade” como categoria de análise e como categoria de prática é muitas vezes borrada.
3. Entendida como um aspecto central da “individualidade” (individual e coletiva) ou como uma condição fundamental do ser social, a “identidade” é invocada para apontar para algo supostamente profundo, básico, permanente ou fundado. Isso se distingue de aspectos ou atributos mais superficiais, acidentais, fugazes ou contingentes do eu, e é compreendido como algo a ser valorizado, cultivado, apoiado, reconhecido e preservado. Esse uso é característico de certas vertentes da literatura psicológica (ou psicologizante), especialmente influenciada por Erikson, embora também apareça na literatura sobre raça, etnia e nacionalismo. Aqui também os usos práticos e analíticos da “identidade” são frequentemente confundidos.
4. Entendida como um produto da ação social ou política, a “identidade” é invocada para destacar o desenvolvimento processual e interativo do tipo de autocompreensão coletiva, solidariedade ou “grupalidade” que pode tornar a ação coletiva possível. Nesse uso, encontrado em certas vertentes da literatura do “novo movimento social”, a “identidade” é entendida tanto como um produto contingente da ação social ou política quanto como uma base ou base de ação posterior.
5. Entendida como o produto evanescente de discursos múltiplos e concorrentes, a “identidade” é invocada para destacar a natureza instável, múltipla, flutuante e fragmentada do “self” contemporâneo. Esse uso é encontrado especialmente na literatura influenciada por Foucault, pós-estruturalismo e pós-modernismo. De forma um pouco diferente, sem armadilhas pós-estruturalistas, também é encontrado em certas vertentes da literatura sobre etnicidade — notadamente em relatos “situacionistas” ou “contextualistas” de etnia. [3]
Segundo essas compreensões, identidade é aquilo que pode tanto descrever a autopercepção do indivíduo, como também algo compartilhado pelo grupo. Ela pode descrever um aspecto permanente e essencial, ou ainda algo que se desfaz em constante transformação. As compreensões de identidade podem apontar para realidades construídas ou tão somente percebidas e assumidas. Para alguns usos teológicos das categorizações de Brubaker e Cooper, recomendo o trabalho de Ryan S. Peterson e sua defesa da Imago Dei como identidade humana. As proposições de Peterson talvez se assemelham às de muitos dos que problematizam ou recusam a sexualidade como identidade, mas seu esforço intelectual e teológico são notáveis e úteis à discussão. Considere a entrevista de Peterson à Preston Sprinkle como um primeiro contato com o autor.
A utilização teológica mais comum do conceito de identidade tem sido a de que a identidade do cristão está em Cristo. Essa tem sido a resposta evangélica comum para diversas problemáticas que ganharam a pecha de identitárias. Muitos conservadores evangélicos rejeitam a noção de identificação social com um grupo minoritário alegando que a única identidade que realmente importa é a que temos em Cristo. Ao menos retoricamente, parece ser essa a resolução adequada e definitiva para lidar com controvérsias de identidade, já que poucos cristãos podem contestar a afirmação de que sua identidade, aquilo que elas são, não está em Cristo.
Mas mesmo entre os mais conservadores, há quem não se convença da utilização da linguagem da identidade em Cristo. Em um artigo chamado “Pare de encontrar sua identidade em Cristo” , Caleb Morell procura apresentar reparos à linguagem da identidade em Cristo,cujo objetivo é investigar, antes de mais nada, a incidência do tema na literatura teológica cristã. Morell descobre que, antes dos anos noventa, é incomum encontrar na literatura teológica a linguagem da identidade em Cristo de maneira significativa — o conceito só ganharia algum lastro definitivo em meados da década de noventa e se tornaria mais recorrente na linguagem teológica ao longo dos anos dois mil. A teologia da identidade em Cristo é entendida por Morell como um empréstimo do conceito secular na proporção em que o tópico foi se estabelecendo no debate intelectual e público. Caleb apresenta o gráfico a seguir sobre a ocorrência da expressão em um intervalo de mais que cinquenta anos na literatura teológica:
Para Morell, o fato de ser um conceito novo faz com que ele precise ser recebido com cautela, pois, na maior parte do tempo, os cristãos viveram sem buscar o que hoje se chama de identidade em Cristo. Um de seus reparos a essa terminologia ainda se debruça em como a linguagem da identidade em Cristo acaba criando falsos dilemas e oposições com outras identificações consideradas legítimas e que se apagam “em Cristo”. É verdade que, enquanto evangélico e conservador, as preocupações quanto a essas identidades estão considerando coisas como nacionalidade e complementaridade de papéis de gênero:
Como “identidade” tende a ser usada como uma categoria vazia, ela coloca um prêmio na escolha através da negação de outras identidades como homem, irmão, pai e filho. Assim, “identidade em Cristo” é frequentemente usada para minar erroneamente chamados bíblicos legítimos, como gênero e nacionalidade. As Escrituras ensinam que nascemos em relacionamentos de obrigações mútuas, como filhos, filhas, pais e mães, independentemente de nossas escolhas pessoais. Insistir: “Eu não sou americano porque minha identidade está em Cristo” ignora as linhas de fronteira da geografia e o tempo que Deus nos reservou (Atos 17:26) e chama de bom (Sl 16:6). Dizer, “Eu sou uma dona de casa, mas me identifico como uma escritora e pensadora criativa” minimiza a legitimidade da maternidade como uma vocação divinamente sancionada (Gn 3:20; Tito 2:4–5). Se a identidade for escolhida, que lugar há para qualquer outra obrigação além de ser fiel a si mesmo? Em contraste, a Escritura ensina que estamos inseridos em relacionamentos de obrigações mútuas para manter e abraçar fielmente.
Já o teólogo natural Joel Carini expande as constatações de Morell para explorar não apenas a ocorrência recente da linguagem da identidade em Cristo, mas a própria noção igualmente recente de uma “identidade em” alguma coisa. Carini acredita que dizer que sua identidade está em algo é uma característica da pós-modernidade e os próprios conservadores se tornaram pós-modernos ao pensarem que sua identidade pode ser encontrada em algo:
“Gay” é uma descrição precisa para pessoas cuja orientação sexual é homossexual. Descrever a si mesmo ou a outro como “gay” não é criar uma “identidade”, mas apenas descrever com precisão uma característica de uma pessoa. Nesta questão, são os conservadores teológicos que se comprometeram com as categorias mundanas, neste caso, as categorias de identidades auto-atribuídas e “identificação como ”. Os conservadores se tornaram totalmente pós-modernos aqui: é tudo uma questão de como você se identifica. (…) O uso padrão de “identificar” está mais intimamente relacionado a reconhecer algo, determinar o que é. Eu poderia olhar para uma folha no chão e tentar identificá-la como a folha de um bordo, um sicômoro ou um carvalho. Identificar uma coisa como algo é determinar que ele é de um certo tipo ou exibe uma certa característica. Na linguagem moderna, ou melhor, na “linguagem pós-moderna”, “identificar-se como” algo é ser infalível ou incorrigível sobre isso, não tendo possibilidade de ser corrigido ou verificado: autoverificação.
Carini parte de uma teologia empírica para rejeitar a noção de uma “identificação em”, substituindo-a por uma linguagem da constatação de que somos alguma coisa e que, por essa razão, essa coisa deve ser devidamente nomeada:
Se abandonássemos a conversa sobre “identidades”, muita coisa seria resolvida. Em vez disso, deveríamos adotar a conversa sobre várias condições sexuais, psicológicas e fisiológicas, identificadas empiricamente. Se há um ponto em que os cristãos adotam acidentalmente categorias corruptas, não é o uso das palavras “gay” ou “orientação sexual”. É a adoção da expressão idiomática “identificar-se como”. (…) a objeção mais teológica vem da confusão de “identificar-se como” com outra expressão idiomática contemporânea popular envolvendo o mesmo morfema: “Encontre sua identidade em”. A objeção é que os cristãos não devem “se identificar como” gays porque os cristãos devem apenas “encontrar sua identidade em Cristo”. Agora, formalmente, isso nem funciona. “Identificar-se como” não é “encontrar sua identidade em”. Se os cristãos devem apenas “encontrar sua identidade em Cristo”, então segue-se que eles não devem encontrar sua identidade em sua orientação sexual. Mas não segue-se que eles não têm permissão para descobrir, ou seja, identificar, qual é sua orientação sexual. Não tenho permissão para identificar nenhuma das minhas características, para que eu não “encontre minha identidade nelas”? “Com certeza parece no espelho que tenho cabelos castanhos, mas se Deus quiser me mudar…”
Identificar-se como gay ー e Carini está aqui em um diálogo com a controvérsia dos cristãos celibatários que se identificam com gays e os que rejeitam essa terminologia ー seria mais uma constatação e auto-percepção adequadas do que assumir propriamente uma identidade:
Celibatários, cristãos gays certamente parecem não estar encontrando sua identidade em sua homossexualidade, daí o ser cristão e celibatário. Só podemos concluir que as pessoas não deveriam encontrar sua identidade em sua homossexualidade, com o que todos concordam (…) Mas… eles são gays? Se sim, não é apenas bom, mas moral para eles admitirem isso, entrarem na luz e conhecerem a graça de Cristo, de preferência através da graça e da gentileza de seu povo, em vez de apesar de sua rejeição por outros cristãos. Se você é gay, então você deve se descrever como gay. Em contextos cristãos, parear isso com a fé cristã e o celibato (ou castidade, incluindo casamentos de orientação mista) é prudente, portanto, “celibatário, cristão gay”. Na objeção à auto-descrição, há uma visão exaltada de adjetivos como nos dando identidades ou nos definindo. Mas as pessoas não têm definições. Apenas palavras têm. É um erro de categoria. Adjetivos não nos fornecem identidades, nem nos definem. Eles nos descrevem. E eu diria que a auto-descrição precisa é muito importante para a vida cristã. No entanto, a subcultura cristã contemporânea na verdade milita contra a autodescrição precisa, em sua antipatia não apenas pela orientação sexual, mas pela psicologia em geral e por fontes empíricas de informação sobre pessoas. A antropologia teológica de origem bíblica é importante, mas não impede ou substitui a psicologia e a antropologia empíricas. Eu recomendaria que os cristãos parassem de debater sobre identidade e começassem a estudar descrições empíricas precisas da condição humana.
Há ainda aqueles que procuram fazer outras distinções que permitam melhores compreensões para usos da ideia de identidade associada aos cristãos que se identificam como LGBTQIA+. Ron Belgau procura fazer uma distinção ontológica e fenomenológica quando se fala em uma identidade gay: a linguagem fenomenológica descreveria as aparências, enquanto a linguagem ontológica fala sobre as coisas como elas realmente são. Pieter Valk acompanha Belgau em estabelecer essa distinção: “Quando definimos algo fenomenologicamente, estamos nomeando algo com base na experiência de alguém ou não que parece ser. Em contraste, quando perguntamos quem é uma pessoa ontologicamente, estamos questionando quem ela é inatamente, por design”. Para Belgau e Valk, quando cristãos se apresentam como pessoas LGBTQIA+ eles nem sempre o fazem num sentido ontológico e essencial, mas se descrevem a partir daquilo que reconhecem ser.
Linguagem: Chamando as coisas pelo nome que elas têm.
O aspecto mais crucial do debate sobre sexualidade e identidade está na discussão sobre o uso de uma linguagem ou terminologia de identificação, ou seja, seria legítimo um cristão utilizar terminologias correntes como gay, lésbica, bissexual ou transsexual para se identificar? Os autores brasileiros que estamos levando em consideração, David Riker e Pedro Dulci, acreditam que não, e para isso eles recorrem ao ministro anglicano Sam Allberry, notável entre os que hoje reinvindicam um lugar no debate sobre sexualidade — ele mesmo um homem assumidamente atraído por outros do mesmo sexo. David Riker diz em seu livro:
…faço uma distinção entre os termos “homossexual” e “pessoa com atração pelo mesmo sexo”, Nesse particular, tomo a exemplicaficação do Sam Alberry, no livro Deus é contra os homossexuais?:
“Usei o termo “atração por pessoas do mesmo sexo”, porque o desafio imediato é a descrição de mim mesmo. Na cultura ocidental de hoje, o termo óbvio para alguém com sentimentos homossexuais é “homossexual”. Todavia, na minha experiência, ele muitas vezes se refere a muito mais que à orientação sexual de alguém. O termo descreve uma identidade e um estilo de vida. Quando alguém afirma ser homossexual ou bissexual, isso normalmente significa que, além de se sentir atraído por alguém do mesmo gênero, sua preferência sexual é um dos pontos mais fundamentais de identificação pessoal. Por essa razão tendo a evitar o termo. Parece estranho descrever-me como “alguém que sente atração por pessoas do mesmo sexo”. Essa descrição é uma forma de reconhecer que o tipo de atração sexual que experimento não é fundamental para a minha identidade. É parte do que sinto, mas não é quem sou, no nível mais básico. Eu sou muito mais que a minha sexualidade.” [4]
Após a citação de Alberry, Riker adiciona mais razões para recusar qualquer identificação que não provenha de Deus:
Espero que isso lhe mostre como reconhecer sem medo a existência de atração sexual por pessoas do mesmo sexo sem permitir que essa característica extrapole a importância que tem na sua vida e passe a determinar sua identidade “no nível mais básico”. Não entenda essa afirmação como um ato de menosprezo aos seus sentimentos. Eles não são desprezíveis. Você não deve fingir que eles não existem, nem viver em um armário de engano e trevas. Ao contrário, aceitar que tais atrações fazem parte da sua história torna tudo mais leve e estimula a santificação. No entanto, essa aceitação não significa assumir uma identidade fundamentada no próprio coração ou em um estilo de vida pecaminoso. Dito de outro modo, aceitar a existência de atração homossexual não significa abraçar uma identidade não embassada em Deus, nem que a prática homossexual deixou de ser um pecado apenas pelo fato de você sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo. Somente Deus tem o poder de determinar quem somos. Ao se converter, o cristão não vê, necessariamente, a atração homossexual/bissexual desaparecer, mas deve abandonar qualquer senso de identidade falso que estiver elicerçado sem sentimentos ou desejos. De fato, converter-se significa passar a se definir a partir da Palavra de Deus. [5]
O pastor e teólogo presbiteriano Pedro Dulci também se alinha ao discurso da negação da sexualidade como identidade para firmar uma identidade em Cristo. Dulci acredita que essa postura pode ser atestada pelas escrituras:
(…) Quando aceitamos os termos da discussão pública contemporânea e vinculamos desejos e orientações sexuais à nossa identidade perdemos de vista a proposta cristã para a compreensão de quem realmente somos com e sem Cristo. O surgimento de uma identidade como “pessoas homossexuais” ou até mesmo “pessoas trans” é a maior prova do triunfo da revolução sexual e de seus conceitos em nosso imaginário social. Falar disso há 100 anos em qualquer parte do globo era, simplesmente, impensável. A moralidade cristã não vincula nossa orientação sexual à nossa identidade. Era muito difícil alguém ser chamado de homossexual só porque sentia atração por pessoas do mesmo sexo. Nossa identidade é bem maior que nossas práticas. Novamente, o raciocínio do apóstolo Paulo nos ajuda a entender como os autores do Novo Testamento encaravam essas questões e construíram uma moralidade que não limitava nossa identidade aos nossos sentimentos e afetos. Quando o apóstolo dos gentios faz uma lista de práticas de indivíduos que não herdarão o reino de Deus, além de tratar de maneira igual mentirosos e homossexuais, ele deixa claro: “assim foram alguns de vocês’ ( 1 Co 6.11a), mas a identidade de vocês foi mudada; “vocês foram lavados, foram santificados, foram justificados, no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de Deus” (1 Co 6.11b). A identidade de vocês agora não está atrelada ao que faziam e continuam desejando fazer. Vocês morreram, e agora a sua identidade está escondida com Cristo em Deus (Cl 3.3). Essa forma de enxergar nossa identidade e sexualidade é libertadora. [6]
Pedro, assim como Riker, tenta encontrar em Sam Alberry uma validação para essa compreensão de devidamente nomear algo, sem soar identitário:
As opções de Albery são muito inteligentes. Ao dar nomes corretos para questões diferentes, ele desarticula uma série de conflitos que poderiam ser enfrentados sem necessidade. O desafio de quem sente atração por pessoas do mesmo sexo é diferente do desafio de encontrar em Jesus o paradigma de sua identidade. É claro que o segundo transforma totalmente o primeiro; entretanto, mesmo relacionados, são diferentes. Desvincular apetites de identidades é uma das maiores necessidades de nosso tempo 一 pense, por exemplo, nos juristas que precisam conceituar família e uma de suas grandes lutas é mostrar que vínculos afetivos não são suficientes para constituir a identidade familiar. [7]
Saber dar os “nomes corretos” foi a maneira pela qual os movimentos de reparação sexual estruturaram um discurso ex-gay desde os anos 1970, como mostrou Greg Johnson em seu livro sobre o movimento ex-gay nos EUA. A linguagem de “atração pelo mesmo sexo” é uma herança discursiva das táticas de cura gay:
No final dos anos 2000, a mudança de “ex-gay” para “lutando contra a atração pelo mesmo sexo” estava quase completa. Essa reestruturação de como os cristãos conservadores falavam sobre a orientação homossexual levou menos de uma década. (…)
(…) A adoção da linguagem da atração pelo mesmo sexo nos anos 2000 tornou mais sustentável continuar mantendo o roteiro ex-gay, ao menos por enquanto. Eu não precisava mais dizer: “Eu costumava ser gay” e, assim, implicar que agora sou heterossexual. Esse era o velho roteiro ex-gay. Agora eu poderia dizer: “Eu costumava ser gay, mas não me considero mais gay. Agora sou apenas atraído pelo mesmo sexo. (…)
(…) O movimento ex-gay passou décadas criando uma narrativa na qual o gay deixou de ser gay ou homossexual e mudou para se tornar outra coisa: ex-gay ou heterossexual ou no caminho de cura para a vida heterossexual. Essa expectativa de mudança não foi embora. Permaneceu uma expectativa de que você se arrependa de uma autopercepção homossexual e pense em si mesmo como tendo mudado. Com a linguagem da atração pelo mesmo sexo, os cristãos ainda podiam falar de ter se arrependido de uma identidade gay ou autopercepção gay sem ter que fingir que sua orientação havia mudado (…)
Dentro dos limites de espaços religiosos altamente conservadores durante uma violenta guerra cultural entre gays e cristãos, essa nova linguagem abriu uma maneira de falar sobre nossa experiência enquanto sinalizava nosso compromisso com a sexualidade bíblica (…).
(…) Mas a nova terminologia levantou uma questão. O que significa deixar de ser gay, quando você está admitindo abertamente que é exclusivamente atraído pelo mesmo sexo? A expectativa de uma possível mudança de orientação sexual é a única diferença entre perceber-se como homossexual e perceber-se como atraído pelo mesmo sexo? Em caso afirmativo, o que acontece se essa expectativa de mudança de orientação diminuir drasticamente? Nesse ponto, o roteiro ex-gay se torna semântico? Como uma relíquia da terapia reparativa, o arrependimento de uma autopercepção homossexual ainda tem algum significado real? [8]
Quando o movimento ex-gay sucumbiu nos EUA nos anos 2010, a linguagem da atração pelo mesmo sexo permaneceu mesmo entre uma nova geração de autores que não estava reivindicando o discurso da mudança da sexualidade, o caso de autores como Sam Alberry. E de Sam Alberry, o discurso é captado por autores como Dulci que também o fazem ser seu:
A capacidade de libertação e significado que essa separação entre apetite e identidade traz é muito grande. Quando formos honestamente ao encontro de nossos amigos que estão lutando sinceramente com as necessidades mais diversas na ordem sexual, podemos auxiliá-los muito dizendo: “Pera aí, você não é isso. Você é muito mais do que você sente, você não é seu descontrole emocional. Você não é seu descontrole libidinal. Você é bem mais que isso.” Uma moralidade bíblica tem condições de liberar nossas estruturas identitárias das pressões direcionadas da cultura marcada pela rebeldia e pela apostasia. [9]
É significativo que evitar se identificar como gay seja, para Dulci, evitar se apegar a um “descontrole emocional”. A maneira como muitos pastores héteros tratam a questão mostra um distanciamento de quem está lidando com um outro e, por estar distante, ele coloca esse outro nos piores lugares. Quando estão falando de seus próprios afetos, desejos ou família, esses pastores rapidamente pintam a questão em quadros mais afáveis. Recentemente, em uma rede social, Dulci conseguiu refletir sobre a importância de afeição em termos muito sensíveis e identificar como a sexualidade o atravessa profundamente:
Cresci ouvindo e lendo argumentos de filósofos e teólogos cristãos que defendiam alguma forma daquele tipo de ideia que “o ser humano tem uma carência no fundo do seu coração que só Deus pode saciar”. Agostinho, Pascal, Dostoievski, Lewis, cada um, do seu jeito, tem uma versão diferente desse argumento. Em parte ele está certo, mas não é o todo da história! Foi Tremper Longman III e Dan Alender que me chamaram atenção para o fato de que: ‘Deus não preenche com exclusividade o coração humano. Ele fez a humanidade com carência de algo mais do que ele mesmo”. (Aliados íntimos, p. 145). Quando fomos criados, Deus nos deu ordenanças espirituais (uma aliança com ele), mas também nos fez seres de cultura e seres de relacionamentos sociais. Meus anos ao lado desses três têm me ensinado como eu estava incompleto sem eles e como não era bom minha vida só!
Anteriormente em seu livro, Dulci procurou encontrar algum respaldo bíblico para a relativização das identidades:
Se foi a onda cultural da chamada Revolução Sexual que lançou uma batalha para reconhecimento da existência de algo como uma classe de “pessoas gay”, então precisamos questionar por que a moralidade bíblica não atrela a nossa sexualidade à nossa identidade. Até mesmo intelectuais não cristãos já descobriram o poder titânico da afirmação do apóstolo Paulo de que nossa identidade está em Cristo e que, por isso, não existe mais homem ou mulher, escravo e livre, judeu ou gentio (Gl 3.28) ー ou seja, distinções étnicas, disitinções culturais e até mesmo as famigeradas distinções de gênero, em Cristo, foram relativiazadas, pois ele é tudo em todos! [10]
Dulci perde de vista algumas coisas ao afirmar algo do tipo: primeiro, espera que termos como “identidade” ou “orientação sexual” sejam correspondentes entre si nas escrituras e, como já vimos, identidade é um conceito historicamente recente, por isso, as escrituras e boa parte da teologia não utilizam essa linguagem — ao menos em muitas das acepções que ela possui hoje. O apóstolo Paulo não associa nossa sexualidade à nossa identidade pois na verdade ele não identifica nada com coisa alguma nesses termos. Podemos dar razão a Joel Carini em dizer que conservadores estão sendo pós-modernos ao dizerem que nossa identidade está em algo, pois a linguagem da “identidade em” não é realmente bíblica, sendo mais comum à própria percepção pós-moderna de indivíduo. Ao dizer ainda que, em Cristo, certas identidades foram relativizadas, Dulci tenta adicionar à compreensão de que “não há homem ou mulher, escravo e livre, judeu e gentil” o fato de que não haveria também heterossexuais ou homossexuais, no entanto, esse tipo de percepão se aproxima mais de algumas proposições das teorias queer que propõem a superação das categorias de gênero do que uma pretensa ortodoxia bíblica. Não parece crível que a passagem de Gálatas promova uma relativização que pretenda apagar as identidades, mas sim uma preocupação em dizer que em Cristo não há distinção ou limites de pertencer, todos podem estar em Cristo, independente de gênero, etnia ou classe. A mulher ou o grego não deixam de ser mulher ou grego, eles passam agora a estar unidos a Cristo e não diluídos em Cristo, sendo assim, eles ainda preservam a realidade objetiva que os atravessa. A linguagem da união com Cristo, além de estar mais consonante com a linguagem bíblica, fornece uma imagem melhor da relação com Cristo que não cria uma falsa oposição entre identidades no sentido ontológico e fenomenológico.
Ainda sobre como as escrituras acomodam marcadores de identidade 一 e particularmente os mencionados em Gálatas 一, o conselheiro bíblico Alexander Thermenos procura pensar em termos de uma identidade em Cristo que não rejeite outros marcadores e identificadores sociais, antes, propõe uma identidade em Cristo que reconheça os pertencimentos contextuais:
Vamos começar com uma breve exploração de Colossenses 3:11–4:1. Nessa passagem, Paulo está preocupado em lidar com uma série de identificadores que polarizam os membros da igreja — “grego e judeu, circuncisão e incircuncisão”. Ele aborda essa questão dizendo a seus leitores que Cristo estabeleceu uma “nova humanidade”, constituída de todos aqueles que depositam sua fé nele. Como seus leitores fazem parte dessa nova humanidade, eles devem viver de maneira diferente do que sua cultura e seus corações lhes dizem. No entanto, ele não descarta totalmente o papel que seus outros identificadores desempenham. Em vez disso, ele os coloca sob uma nova luz. O comentarista Douglas Moo observa
“Aqueles que pertencem a Cristo constituem uma “nova humanidade”, dentro da qual as distinções deste mundo, embora não obliteradas, são relativizadas. Como o código “doméstico” em 3:18–4:1 deixa claro, a comunidade cristã é composta por pessoas que mantêm suas identidades de gênero, familiares e sociais. Os judeus ainda são judeus em Cristo; Os gentios ainda são gentios em Cristo; escravos ainda são escravos em Cristo. Mas estas identidades terrenas já não são o mais importante: a solidariedade em Cristo é agora o paradigma dominante para a nova comunidade.”
Para os cristãos, “em Cristo” se torna a lente através da qual vemos e o centro organizador em torno do qual organizamos todos os nossos outros identificadores. Dessa forma, não os elimina de nossa autoconcepção; dá-lhes o significado adequado. Uma vez que esse identificador fundamental é estabelecido, os crentes são capazes de mapear como deve ser a vida de cada pessoa com base na conexão de seu identificador em Cristo com seus identificadores horizontais. Ao fazer isso, Paulo lida com a identidade da maneira que estou sugerindo acima. Ele conecta a identidade em Cristo a outros identificadores e usa essa interseção de identificadores como base de como seus leitores devem viver.
Isso porque o que nos une transcende e relativiza qualquer coisa que possa nos diferenciar. No entanto, como observa Moo, relativizado não é obliterado. É por isso que Paulo pode, em um momento, negar o significado (agora antigo) dos identificadores horizontais e, no próximo, usar alguns dos próprios identificadores que ele descartou para dar aos cristãos colossenses uma orientação particular sobre como cada pessoa deve viver neste mundo. Maridos, esposas, filhos, escravos, senhores — cada um recebe instruções que são uma variação das instruções que Paulo e outros autores do Novo Testamento dão a todos os cristãos, aqui ou em outro lugar. A razão para a diferenciação é que os identificadores horizontais de cada pessoa exigem uma ênfase ética diferente. Em nossa passagem, esses identificadores incluem gênero dentro do casamento e as relações biológicas e sociais dentro de uma família. Como resultado, cada membro da casa traz à tona sua nova humanidade de uma maneira adequada aos seus identificadores atuais. Cada um assume uma forma diferente que é uma variação da forma fundamental em Cristo assumida por todos os membros. Isso é tão verdadeiro fora de casa quanto dentro dele.
O fato de Paulo dar instruções diferentes a pessoas diferentes elucida um princípio geral nas Escrituras: os mandamentos de Deus sempre operam com base em uma identificação presumida. Se você não sabe que é esposa, filho ou mestre, como saberá quais mandamentos se aplicam a você? Deus identificou você como a pessoa a quem certos mandamentos se aplicam. Nossa linguagem em relação à identidade deve refletir essa realidade.
Conhecer a si mesmo com relação à revelação de Deus, então, significa saber como você deve viver, porque significa saber como a Palavra de Deus se aplica à sua vida particular em seu contexto particular. Além do mais, a Escritura afirma o que temos dito o tempo todo. Como a identidade não é apenas uma categoria subjetiva, queremos que nosso senso de quem somos esteja de acordo com a maneira como Deus nos identifica. Esta e outras passagens sugerem que ele o faz com múltiplos identificadores — tanto verticais quanto horizontais, tanto o que está dentro de nós (o caráter interior do coração) quanto o que é externo a nós (as características do contexto exterior de alguém).
(…) Quando você pensa em seu trabalho, no contexto do seu ministério, em seus relacionamentos — até mesmo nas posses que você administra — em termos de identificação, você os leva mais a sério. Você sente uma sensação de propriedade das escolhas que faz, dos papéis que preenche, dos caminhos que percorre. Como cristão, então, você os possui em nome de seu Senhor, e o faz até que ele o chame para fazer o contrário. Você é quem ele o chama para ser. E o que ele chama você não pode ser definido à parte do seu lugar neste mundo. Todos os seus identificadores são importantes quando se trata de definir quem você é e como deve viver. Você é um eu no contexto. Em vez de se distanciar do seu contexto e do lugar que ocupa nele, incline-se para ele em nome de Cristo. “Faça o que fizer, faça-o de coração, como algo feito para o Senhor e não para as pessoas… Servis ao Senhor Cristo” (Cl 3:23–24). Você o serve exatamente onde está, e onde você está é parte do que significa para você — ao contrário de qualquer outra pessoa — ser seu servo. [11]
Há que se entender que pastores presbiterianos como David Riker, Pedro Dulci, e mesmo outros como Andrea Vargas ou Guilherme de Carvalho devem muito ao que autores como Sam Alberry ou Rosaria Butterfield, estão escrevendo sobre identidade e sexualidade, logo, é sempre necessário ressaltar que esse debate se origina majoritariamente nos EUA e só depois ele nos cai às mãos, mediado e intercambiado por figuras locais com seus compromissos e identificações, como é o caso de quase toda teologia que circula no Brasil.
O mercado editorial brasileiro, na última década, demonstrou interesse em traduzir algumas obras sobre sexualidade. No meio reformado, destacaram-se as iniciativas de editoras como a Monergismo ー conhecida por ser uma crescente divulgadora e promotora de tipos alinhados ao Nacionalismo Cristão e o reconstrucionismo reformado, como o pastor Douglas Wilson ー que fez Sam Allberry e Rosaria Butterfield chegarem ao público brasileiro. Ambos estavam se tornando a referência entre os reformados evangélicos nos EUA e fazia sentido torná-los conhecidos por aqui também — se alguém buscar uma indicação sobre o tema será rapidamente conduzido quase que essencialmente a leitura de Deus é contra os homossexuais? ou ainda Pensamentos secretos de uma convertida improvável, respectivamente os livros de Sam e Rosaria. A questão é que eles são apenas dois em um grande universo de autores emergentes que, na última década, estão fazendo parte dessa conversa, e nela, tanto Sam como Rosaria estão conversando e disputando narrativas e imaginação. Autores como Wesley Hill (que chega a ser mencionado no livro do Dulci), Nate Collins, Greg Coles ou Mark Yarhouse estão no páreo e são vozes significativas no debate, são interlocutores de Sam e Rosaria, mas não são traduzidos no Brasil, de modo que o público brasileiro que se interessa pelo debate não os acessa e só se informa da discussão por aqueles que os agentes do mercado editorial brasileiro decidem que serão lidos, o debate se torna parcial e limitado.
Rosaria Butterfield ainda consegue ser mais publicada à medida que seu discurso se radicalizou nos últimos anos, destoando de sua teologia afável de hospitalidade para com quem pensa diferente. Em 2021, a continuação dos Pensamentos foi publicada pela Monergismo com o título de “União com Cristo e Identidade Sexual — Pensamentos adicionais de uma convertida improvável”, o livro foi originalmente publicado em 2015 e já mostra uma Rosaria demarcando sua distância da teologia dos cristãos gays, sejam eles afirmativos ou celibatários. A quinta parte do livro se dedica a uma ostensiva rejeição à identificação com termos e palavras de definição:
Palavras são importantes. A autorrepresentação é importante. E a identidade em Cristo sangra a união com Cristo e a comunhão dos santos. Esse sangue é verdadeiramente doador de vida. E o termo “cristão gay” tem grande potencial para enganar as pessoas, mesmo quando os que o usam buscam clareza, honestidade e transparência. [12]
Ainda assim, Rosaria reserva o capítulo seguinte para um esforço de ouvir uma amiga com uma percepção diferente da sua, o capítulo se chama Conflito — Quando irmãs discordam, nele Rosaria escreve:
Quando cristãos estão divididos em questões fundamentais, devemos parar e ouvir. Porque concordamos que a glória de Deus é o objetivo final de todas as coisas, sabemos que todos os que são lavados no sangue de Cristo estão no mesmo time. Portanto, devemos parar e nos certificar de que realmente estamos ouvindo uns aos outros. Não ouvir “sim, mas” que ataca todos os pontos de discordância. Mas ouvir com empatia. Para levar nossa conversa sobre identidade sexual e união com Cristo a um nível mais pessoal, quero apresentar uma amiga que usa a autorrepresentação de “cristão gay”. O que precisamos fazer quando estamos em um impasse com outro cristão é calar a boca e dar toda a atenção à nossa irmã cristã. Sou grata pela minha amiga Rebecca (…) Veja, somos irmãs no Senhor, mas discordamos. Somos amigas e discordamos. (…) Por favor, ouça minha amiga. (…) Eu quero estar com Rebecca e caminhar neste mundo cristão juntas, continuando a orar, a abrir a Palavra, a nos arrepender dos pecados e a buscar a orientação de Deus enquanto nos engajamos na amizade cristã. Quero dividir um lugar à mesa com a Rebecca. Uma amizade complexa, com certeza, mas não a teria de outra maneira. (…) Amizade e proximidade são componentes necessários para trabalhar as diferenças teológicas no amor cristão. As ideias não são suficientes. Ideias apoiadas pelo sarcasmo e ira e difundidas pelos canais da internet fazem mais mal que bem. As ideias nunca foram suficientes. Não para Deus. Ideias que dividem devem ser acompanhadas por pratos de sopa quente quando as flores de um quintal imploram que sejam podadas para poderem brotar no próximo jardim. Ideias que dividem devem viajar por trás das práticas da vida cristã que nos permitem ficar ombro a ombro ao nos submeterem a nosso Deus santo e amoroso. Esse é o trabalho cristão de verdadeiros próximos. [13]
Desde então, quase uma década depois de quando Rosaria escreveu isso, ela já não parece ser tão hospitaleira e convidando os outros para chás com biscoitos. Seu mais recente livro é o ápice de seu reacionarismo, seu discurso rejeita cristãos que se denominam gays mesmo entre aqueles não afirmativos e sua postura bélica a faz cada vez mais se assentar entre os mais conservadores e reacionários que, na maior parte do tempo, não estão dando espaço e nem plataforma para as mulheres falaram.
Disputas sobre identidade e linguagem não são a natureza de conflitos entre aqueles que preservam uma ética tradicional sobre sexualidade e aqueles que assumem uma postura mais afirmativa — esses dois grupos já estão tão incomunicáveis em razão de suas diferenças que normalmente não são eles os interlocutores na conversa. Essa é essencialmente uma discussão nas próprias fileiras de cristãos com uma visão tradicional onde de um lado estão aqueles que assumem uma teologia da identidade em Cristo e do outro os chamados cristãos do Lado B/Side B, um terminologia para se referir às comunidades de cristãos LGBTQIA+ celibatários ou em casamentos de orientação mista que afirmam sua identidade queer. Os últimos não possuem uma presença efetiva no Brasil, sendo os autores anti-identidade LGBTQIA+ os que são publicados e popularizados no país.
Mas consideremos um pano de fundo maior. Foi a partir de 2018 que a discussão sobre identidade ganhou contornos consideráveis nos Estados Unidos, quando uma igreja vinculada à Igreja Presbiteriana na América (PCA) hospedou a primeira edição da conferência Revoice, uma organização que congrega cristãos LGBTQIA+ do Lado B. Setores reacionários da denominação presbiteriana majoritariamente conservadora reagiram negativamente ao verem algo assim sendo recebido em suas fronteiras e a resposta denominacional mais considerável foi a redação de um relatório aprovado em sua Assembleia Geral em 2021. O relatório procurou cobrir alguns pontos que estavam sendo considerados controversos na discussão, como identidade, linguagem e concupiscência. Tim Keller e Kevin DeYoung estavam na equipe escolhida para compor o relatório que hoje orienta a teologia da denominação sobre sexualidade, o que foi muito possivelmente a última grande contribuição de Keller para a PCA antes de partir.
O relatório é amplo e pode ser discutido em muitos de seus tópicos, mas o que nos interessa aqui é sua seção sobre identidade e linguagem. Em linhas gerais, o relatório tendeu a rejeitar a concepção de “cristão gay” como uma linguagem desaconselhável para o cristão com atração pelo mesmo sexo, mas apesar disso, o relatório consegue ser mais profundo, reflexivo e consciente das opinões distintas entre os interlecutores cuja boa parte dos livros e discursos foram analisados ao longo desse artigo. Considere o tópico referente a “linguagem” encontrado no relatório:
(…) a linguagem que escolhemos para descrever a realidade é importante. Nossa linguagem e terminologia devem procurar articular fiel e utilmente as verdades de nossa doutrina que estão enraizadas nas Escrituras. Devemos escolher nossa linguagem com cuidado com o objetivo de que ela expresse a verdade e se comunique de forma clara e cativante em nosso contexto particular. Em segundo lugar, a linguagem em si é uma questão secundária em relação à doutrina que ela expressa. Às vezes, há divergências sobre a linguagem, mesmo quando os compromissos doutrinários subjacentes parecem ser os mesmos. Assim, enquanto a verdade doutrinária é corretamente entendida como obrigando nossa afirmação, as questões em torno da terminologia são mais adequadamente entendidas como questões de sabedoria, necessitando de cuidadosa orientação bíblica e pastoral. Em terceiro lugar, devemos reconhecer que os significados dos termos mudam com o tempo e que as definições podem não ser compartilhadas entre diferentes grupos de pessoas. Isso é especialmente verdadeiro na área da sexualidade, onde a terminologia parece estar se desenvolvendo com rapidez crescente e onde pode haver poucas definições compartilhadas entre as comunidades. Finalmente, as questões que envolvem a identidade sexual e a identidade em geral não podem ser reduzidas apenas à linguagem. Existe uma maneira de tornar o ser gay central para a personalidade, enquanto ainda usa uma linguagem circunspecta ou “aceitável”. Da mesma forma, existe uma maneira de tornar o ser gay muito menos central para o ethos e a identidade de alguém, mesmo usando uma linguagem potencialmente menos útil. Por essas razões, a forma como as pessoas se expressam não é determinante de sua identidade.
Gay e Cristão Gay
Tomemos, por exemplo, a palavra gay, que passou por uma enorme transformação lexical nos últimos setenta e cinco anos. Hoje, mais comumente se refere a um senso de identidade em relação à atração sexual contínua pelo mesmo sexo. No entanto, diferentes comunidades definem esse senso de identidade com diferentes nuances. Alguns cristãos podem se descrever como gays apenas como uma forma de articular que experimentam atrações proeminentes e persistentes pelo mesmo sexo, usando terminologia com a qual nossa cultura está familiarizada. Outros acham que o termo gay é uma parte importante de ser honesto sobre a realidade de suas atrações sexuais, especialmente porque outros termos como atração pelo mesmo sexo são percebidos por alguns como associados a abordagens de “ex-gay” ou mudança de orientação. Outros cristãos podem se descrever como gays para se identificarem com a comunidade LGBT como um grupo de pessoas com uma história, cultura e experiência compartilhadas. Geralmente, quando o termo gay é usado em nossa cultura, ele denota todos os itens acima, juntamente com a suposição de que essa experiência é uma parte natural e boa da experiência humana diversificada que deve ser celebrada e pode ser posta em prática como uma pessoa achar melhor. Assim, a palavra gay pode denotar um número de coisas que podem variar de uma observação factual sobre as experiências de alguém, a uma compreensão profundamente anti-bíblica sobre a identidade e os desejos de alguém. Apesar dos usos dinâmicos e diversos do termo, a palavra gay não é uma palavra neutra em nosso discurso cultural, e os cristãos devem estar atentos a essas dinâmicas ao considerar o uso do termo.
Dados os problemas potenciais com o termo gay, podemos ver como o termo gay cristão pode estar aberto a um grau ainda maior de mal-entendidos. Alguns usam o termo de uma maneira adjetiva simples, sugerindo que o adjetivo gay serve apenas para descrever a quais cristãos em particular se está referindo (ou seja, aqueles que experimentam atrações pelo mesmo sexo) sem intenções de fazer uma declaração definitiva sobre identidade. Outros o usam para articular como o fato de estarem “em Cristo” moldou sua abordagem à homossexualidade ou atração pelo mesmo sexo (veja, por exemplo, aqueles que usam o termo cristão gay celibatário). Por causa dessa dinâmica, é evidente que o termo cristão gay não é adequadamente claro ou teologicamente preciso ao expressar o tipo de auto-compreensão bíblica reformada que descrevemos anteriormente. O termo pode ser tornado mais inútil pelo fato de que há muitos que o usam para descrever uma visão de sua identidade sexual que é “afirmativa” — que acredita que os desejos e relacionamentos sexuais entre pessoas do mesmo sexo são abençoados por Deus. Há um desejo compreensível entre alguns cristãos celibatários que se identificam como gays de utilizar a linguagem comum de nossa cultura como uma ferramenta missionária ou apologética, na esperança de redefinir para nossa cultura uma maneira de ser gay que de fato submete esses desejos ao senhorio de Cristo. No entanto, há um risco correspondente substancial de sincretismo em tal abordagem. Esse perigo potencial para o sincretismo pode se manifestar como uma identificação excessiva com a comunidade LGBT (contra uma identificação primária com a igreja) ou mesmo a formação de uma subcultura LGBT dentro da igreja. Em vista dos perigos gêmeos do mal-entendido e do sincretismo, acreditamos que geralmente não é sensato usar a linguagem do cristão gay. Diante dessa conclusão, como devemos responder aos irmãos em nossas igrejas que podem usar essa linguagem? Primeiro, não devemos partir da suposição de que eles estão sendo infieis ou vivendo em rebelião ativa contra Deus. Em vez disso, no contexto de relacionamentos estabelecidos, os pastores e líderes da igreja devem fazer perguntas e procurar entender a história de cada indivíduo. Por que eles usam essa linguagem? Eles pensaram nos benefícios e perigos relativos? Observando a gama de significados possíveis de termos como gay e gay cristão, faríamos bem em buscar entendimento antes de dar conselhos. Em termos práticos e claros, a questão da terminologia é mais provavelmente uma questão de pastoreio em sabedoria, e não em si mesma base para disciplina (p. 29–30).
Apesar da postura minimamente amistosa do relatório, nos anos que se seguiram à aprovação do relatório, os grupos reacionários e homofóbicos da denominação se mobilizaram para impedir que homens atraídos pelo mesmo sexo fossem considerados candidatos qualificados para os ofícios de presbítero e diácono na PCA. Posturas dessa natureza institucionalizam aquilo que sempre aconteceu: homens gays/atraídos pelo mesmo sexo se privando da franqueza para serem aceitos em postos e exercerem vocações e ministérios em suas igrejas a custas do silêncio, mentira ou dissimulação.
Mas o que estão dizendo os cristãos que reivindicam uma identidade LGBTQIA+?
Greg Coles, em uma conversa amigável com Rachel Gilson sobre identidade e terminologia, apresenta motivações legítimas para se reconhecer como um cristão gay, que envolvem não apenas uma escolha assertiva, mas uma maneira comunicativa não apenas para os de dentro da comunidade cristã, mas também para os de fora:
(…) Se eu descobrisse que o adjetivo “gay”, ou mesmo “atração pelo mesmo sexo”, me comprometesse inevitavelmente com qualquer tipo de imoralidade sexual, eu recuaria num piscar de olhos e passaria o resto da minha vida falando em rodeios.
Então, novamente, quando encontramos um adjetivo verdadeiro que se comunica de forma eficaz com os outros, evitar esse adjetivo é uma atitude igualmente imprudente. Os rótulos, na melhor das hipóteses, ajudam-nos a compreender a nós mesmos e aos outros com mais clareza, equipando-nos para responder bem ao mundo que nos rodeia.
Então veio a decisão final: se eu fosse adotar um rótulo, qual adotaria? Eu me sentiria “atraído pelo mesmo sexo”, de acordo com minha personalidade de bom garoto da igreja de antigamente? Ou eu enfrentaria meu antigo medo linguístico e usaria a palavra que vinha usando na minha cabeça há anos? Eu me chamaria de “gay” e deixaria a torre Jenga cair?
Nenhuma das minhas escolhas veio sem bagagem histórica. Nenhum dos dois parecia se comunicar perfeitamente com todas as pessoas com quem eu queria falar. E não tive o luxo de inventar uma palavra nova e perfeita para mim. (A linguagem, infelizmente, não é um esporte individual.)
Em certo sentido, eu teria preferido escolher “atração pelo mesmo sexo”. Eu poderia ter me encaixado mais confortavelmente em meus círculos evangélicos se falasse cristão fluentemente. Eu poderia ter me agarrado a todas as vertentes disponíveis da reputação evangélica, mesmo que isso significasse me distanciar de outras minorias sexuais no processo.
Se eu tivesse escolhido me chamar de “atraído pelo mesmo sexo”, teria feito isso em um esforço para provar aos outros cristãos o quanto eu amava a Deus. Mas, no final das contas, decidi que era mais importante que outras pessoas LGBTQ soubessem o quanto Deus as amava . Queria que soubessem que ninguém está desqualificado para seguir Jesus com base na orientação sexual. E a melhor maneira que conheci de dizer isso foi usar a linguagem que a maioria das pessoas LGBTQ usava; não para me distanciar deles, mas para me aproximar relacional e linguisticamente.
Joshua Gonnerman acredita que se identificar como gay é uma maneira de reconhecer algo como qualquer outra coisa em sua vida. Ele reconhece que sua sexualidade não é o mais importante em sua existência, mas mesmo uma identidade em Cristo não o impede de reconhecer que também é um homem gay:
“Você não pode se identificar como gay”, muitos disseram, “porque fazer isso é dizer que o rótulo ‘gay’ abrange você em sua totalidade”. Não tenho gosto por política de identidade, mas a verdade é que todos nós, de fato, navegamos por identidades complexas. Eu me identifico primeiro como um cristão, em segundo lugar como um católico romano ortodoxo. Depois disso, encontramos uma série de apelidos; um agostiniano, um acadêmico, um teólogo, um americano, uma pessoa solteira, um frequentador de teatro, um cozinheiro, um pedestre e — aqui vem a controvérsia — uma pessoa gay ou queer. O locus central da minha identidade, que molda todos os outros aspectos dela, é Cristo. Mas ninguém, após autorreflexão honesta, pode realisticamente afirmar que isso elimina completamente todos os outros aspectos da identidade de alguém. Cristo é a fundação que mostra como outros aspectos da minha identidade podem e não podem ser expressos, mas outros aspectos de quem eu sou dizem algo significativo sobre mim.
A escritora católica Eve Tushnet entende que se identificar como gay é uma maneira de se reconhecer como parte de uma comunidade que ela ama e que é importante em seus relacionamentos:
“gay” descreve uma comunidade (ou realmente, uma grande, contraditória e agressiva disputa de comunidades) e um relacionamento com essa comunidade, e se você não tem nenhum relacionamento notável ou positivo com essa comunidade, então esse é um fato sobre você que presumivelmente o levaria a se identificar de forma diferente. Minha sensação é que pessoas que tiveram muito pouca experiência com comunidades gays, ou cujas experiências foram amplamente negativas, são muito mais propensas a se identificar como “atraídas pelo mesmo sexo” e resistem a se identificar como gays. Meu próprio relacionamento com comunidades queer tem sido importante para mim, amplamente positivo e caracterizado por pertencimento, e é isso que quero dizer quando digo que sou gay.
A necessidade de se comunicar devidamente com a comunidade LGBTQIA+ é também o motivo que leva Pieter Valk achar razoável se apresentar como um homem gay aos seus pares da comunidade. Valk acredita que seus interlocutores de fora da igreja possuem entendimentos mais profundos sobre a palavra gay do que simplesmente de assinalar preferências sexuais e, por isso, será mais fácil entender alguém que se reconheça como cristão e gay do que alguém que se apresente com a linguagem da atração pelo mesmo sexo:
Não importa quais palavras eu use para me referir à minha sexualidade, serei mal interpretado por alguém. Todo termo/frase possível carrega bagagem com um grupo ou outro. E admito que, nos últimos cinco anos, desde que me assumi publicamente e usei a palavra “gay” para descrever minha sexualidade, a maneira como a comunidade LGBT+ protege a palavra “gay” parece ter mudado.
Alguns defensores LGBT+ deixaram de insistir que sentir atração pelo mesmo sexo é tudo o que é necessário para fazer parte da comunidade LGBT+ (ou alguma outra experiência não hétero ou não cis) para insistir que a filiação genuína à comunidade LGBT+ requer concordância com visões políticas não relacionadas à sexualidade/gênero. Ao mesmo tempo, Deus me chamou para alcançar a próxima geração com meu discipulado público. Estudos mostram que a Geração Z e a Geração Alpha se identificam cada vez mais como LGBT/queer e cada vez mais não querem ter nada a ver com Jesus.
Os cristãos estão falhando em incorporar o evangelho de uma forma que realmente mostre Jesus. Onde quer que possamos diminuir as barreiras e tornar mais fácil para a próxima geração ver Jesus, devemos fazê-lo. Isso inclui os termos/palavras que usamos para falar sobre sexualidade.
Se usarmos exclusivamente “atração pelo mesmo sexo” com a Geração Z/alfa, na melhor das hipóteses eles responderão confusamente: “Espera, o que isso significa?” Na pior das hipóteses, eles terão sido avisados pelo TikTok LGBT+ de que apenas os cristãos que querem mandá-los para um acampamento de oração para afastar os gays usam a AMS. Por essas razões, sinto-me chamado a encontrar a Geração Z/alfa onde eles estão e usar as palavras que eles usam para alcançá-los com a sabedoria de Deus para suas sexualidades e, mais importante, com o dom divino da salvação.
Sem maiores esclarecimentos, se eu usar “gay” para me descrever, serei mal interpretado. Então, eu aceito a responsabilidade de esclarecer. Cada vez que eu me chamo de “gay”, preciso esclarecer que estou comprometido com a ética sexual histórica, que estou apenas usando essas palavras para me referir às minhas atrações pelo mesmo sexo, e que estou comprometido com a vida vocacional de solteiro. Então, continuarei me chamando de “gay” enquanto essa for a palavra mais eficaz para usar no trabalho específico que sou chamado a fazer.
Conclusão: Sobre ouvir as demandas dos gregos
O capítulo 6 de Atos nos mostra a origem do ofício diaconal nos primórdios da igreja cristã. Após experimentar um crescimento considerável, os cristãos estavam tendo de lidar com a necessidade de atender mais e diferentes pessoas, o que acabou acarretando numa certa negligência em relação aos judeus cristãos de fala grega, um grupo de judeus que se estabeleceram em territórios helenistas e que passaram a viver em Jerusalém. O relato de Atos mostra que as viúvas dos judeus cristãos de fala grega estavam sendo omitidas na distribuição de alimentos e isso gerou desavenças entre esse grupo etnico minoritário e os demais judeus cristãos. Os líderes da comunidade reconhecerem que não poderiam se ausentar de suas tarefas ministeriais para atender essa demanda e, por isso, acharam oportuno eleger sete homens de bom testemunho para se encarregarem de atender às viúvas dos judeus cristãos de fala grega, e assim elegeram “Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, e Filipe, e Prócoro, e Nicanor, e Timão, e Parmenas e Nicolau, prosélito de Antioquia” (At 6:5). Enquanto as credenciais para a escolha dos sete sejam as de uma piedade cristã notável, um detalhe importante salta aos olhos atentos: os nomes dos sete são gregos. Pareceu significativo para a comunidade que uma demanda trazida dos gregos poderia ser melhor entendida e resolvida pelos próprios gregos, até então um grupo sub-representado na igreja e, com isso, escolher a partir de qualificações piedosas, mas ainda assim entre os gregos.
Atualmente, as desavenças da igreja não são entre judeus gregos e os hebreus ou ainda entre judeus e não judeus, mas ainda assim temos de lidar com aqueles que não estão sendo vistos em nossas igrejas e que não estão sendo representados pois fazem parte de um grupo por vezes invisibilizado. Quais são as nossas “viúvas gregas” atualmente? Me parece legítimo reconhecer que os da comunidade LGBTQIA+ constituem um exemplo analógico ao de um grupo minoritário marginalizado e invisibilizado na igreja que não está sendo atendido de forma qualificada.
Parte dessa desqualificação consiste justamente em tentar apagar ou obstruir um senso de identificação de minorias sexuais e de gênero, pois se elas não são nomeadas ou reconhecidas, podem ser facilmente ignoradas ou diluídas. É significativo o quanto muitos advogam por uma identidade que não compreenda a sexualidade e que alegue que a identidade dos cristãos não é contextual, ela é apenas “em Cristo”. É notável também que muitos dos defensores desses discursos de invisibilização têm as “suas viúvas atendidas”, ou seja, eles são contemplados por ministérios de sexualidade, masculinidade/feminilidade, namoro, casamento, criação de filhos, etc. Em outras palavras, a sexualidade deles é amplamente central nas suas existências, mesmo que ela não precise ser reafirmada propriamente por uma terminologia, enquanto dizem aos cristãos LGBTQIA+ que não são o que sentem ou que essas coisas são secundárias quando temos a Cristo.
Por essas razões, urge a importância dos cristãos LGBTQIA+ se reconhecerem nesse lugar, sejam aqueles que assumem uma teologia de afirmação plena ou mesmo os que, não se convencendo por ela, permanecem como celibatários ou em casamentos de orientação mista. Chamar algo pelo nome, reconhecer e ser reconhecido permite que esses cristãos deixem o lugar cinza da dissimulação, da mentira ou da tentativa de atender expectativas irreais para um lugar do reconhecimento de serem pessoas LGBTQIA+ em Cristo.
[1] Riker, David. O que Deus tem a ver com sexo? — A sexualidade cristã e os desafios contemporâneos. 1. ed., Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil (Coleção Teologia para Todos), 2024. p. 57–58.
[2] Izenberg, Gerald (2016). Identity: the necessity of a modern idea. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
[3] Brubaker, R., Cooper, F. Beyond “identity”. Theory and Society 29, 1–47 (2000). (p. 6–9)
[4] Riker, David. Op. cit. p. 69.
[5] Ibidem. p. 69–70.
[6] Dulci, Pedro. Identidade e Sexualidade: Reformando nossa visão de conceitos fundamentais. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2020. p. 60–61.
[7] Ibidem p. 67–68
[8] Johnson, Greg. Still Time to Care: What We Can Learn from the Church’s Failed Attempt to Cure Homosexuality, Zondervan, 2021 (p. 102–105).
[9] Dulci, Pedro. Op. cit. p. 68.
[10] Ibidem, p. 64
[11] Thermenos, Alexander C., Who Am I? How Should I Live? — Rethinking Identity in Christ. Journal of Biblical Counseling (JBC), v. 35:1, p. 55–60.
[12] Butterfield, Rosaria. União com Cristo e Identidade Sexual, Pensamentos adicionais de uma convertida improvável. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2021. p. 169.
[13] Ibidem, p. 191, 202–203.